8.8.10

O "amor" e o Doce de Côco

Ah, o “amor”! Quando saí de casa para morar sozinho, vivi várias histórias. O morar sozinho é irônico, havia uma pobreza e uma divisão com várias levas de amigos. O amor também não era bem assim. Morar sozinho é irônico porque quem bancava ainda era o velho Lessa. Este pai querido que sempre me assombra nas crônicas deste blog. Mas hoje ele tem direito, é dia dos pais e eu senti saudade daquele que insistia na tese de que as datas comemorativas são uma conspiração das Casas Bahia. Se vivo estivesse, estaria em seu quarto, lendo o Estadão, criticando o governo, a carga tributária, o Edir Macedo e fingindo não saber que dia é hoje. Uma assombração justa. Esta história de morar sozinho começou na rua Capote Valente, em Pinheiros, o primeiro apartamento que o velho comprou ainda jovem, financiado pela Caixa em não sei quantos anos. Ali começaram as minhas estripulias estudantis. Ali tomou corpo meu sonho de sessão da tarde. A Capote tem várias histórias interessantes, mas vão ficar para outro dia. O tema de hoje é o “amor”, propositalmente entre aspas.

Um dos amigos que compartilharam comigo aquele espaço auspicioso foi o Rodrigo Barros, popularmente conhecido como Portú. Uma figura ímpar, inteligência inata, nada intelectual. Um cara com quem se conversa profundamente sem a necessidade de livros ou referências. O Portú, assim como muitos outros amigos, me chamava de “Tai”, abreviação de “Taiwan”, corruptela dantesca de meu maravilhoso nome Tupi-Guarani.

Uma das inúmeras piadas internas por nós desenvolvidas nos anos de convivência foi a teoria da crença no "amor". Vira e mexe o Portú me perguntava: “E aí, Tai, o pessoal continua a acreditar no ‘amor’?”. Era uma pergunta retórica, humorística, cotidiana, mas vinha grávida de um conteúdo filosófico e perturbador. Como se o “amor” fosse impossível, um coelhinho da Páscoa. No fundo ele perguntava se valia a pena colocar em risco tudo aquilo que nós estávamos tentando construir, trabalhando dez horas por dia e chegando em casa exaustos, sem contar as tentativas de resolver à noite as pendengas da família, por um “amor”. A palavra perdeu a poesia, perdeu a literatura. O “amor” virou um gráfico de risco x retorno. O amor para nós estava entre aspas.

O Portú se foi, seguiu sua vida, eu fiquei na Capote por mais um tempo e lá vivi o meu grande “amor”. Uma história extraordinária, renderia quatrocentas páginas se eu fosse o Flaubert. Eu poderia descrever o deslizar lânguido das camisolas rosadas, o perfume inefável dos travesseiros amassados, só que eu nasci em São Paulo e o barulho dos vizinhos e o meu vício em videogame acabaram impactando o “amor”. Isso entre tantas outras coisas que não são para se escrever em blogs, coisas que são das nossas histórias e das nossas neuroses. Mas o fim da relação me fez voltar à pergunta capciosa do Portú muitas e muitas vezes.

Fica fácil não acreditar mais no “amor” após alguns meses de terapia. Lá destrinchamos todos os motivos, todas as incompatibilidades intelectuais, todos os egoísmos, todas as incompreensões. Obtemos as justificativas. Me lembro do tempo em que morei em Jaguariúna. Sempre que estava voltando pra lá, filosofando na estrada,  ouvia o programa do Doutor Gikovate na CBN. As questões sobre relacionamento faziam o maior sentido. Vivemos num mundo individualista e as aspirações egoístas tem que ter seu espaço, sua voz, essa foi a opção que eu fiz e eu tenho todos os argumentos do mundo para ficar sozinho e feliz. Tudo isso é muito legal. Só esqueceram de avisar os poetas e os cantores. A gente às vezes chega em casa meio bebum e escuta uma música assim...




Doce de Côco

Venho implorar
Pra você repensar em nós dois
Não demolir
O que ainda restou pra depois
Sabes que a língua do povo
É contumaz, traiçoeira
Quer incendiar, desordeira
Atear fogo ao fogo

Tu, sabes bem
Quantas portas tem meu coração
E os punhais cravados pela ingratidão
Sabes, também, como é passageira essa desavença
Não destrates o amor

Se o problema é pedir, implorar
Vem aqui, fica aqui
Pisa aqui neste meu coração
Que é só teu, todinho teu
E o escorraça e faz dele de gato
E sapato
E o inferniza
E o ameaça pisando, ofendendo
O desconsiderando,
O descomposturando, com todo vigor
Mas se tal não bastar
O remédio é tocar
Este barco do jeito que está
Sem duas vezes se cogitar
Doce de côco,
meu bom-bocado
meu mal pedaço
De fato, és um esparadrapo
Que não desgrudou de mim

(Música de Jacob do Bandolim / Letra de Hermínio Bello de Carvalho)


A interpretação é da Giana, uma amiga muito querida com quem eu estive essa semana e me inspirou essa postagem.

1.7.10

Crise existencial, política e econômica

Um ano e quatro meses de ócio depois, baixou hoje uma crise existencial. Não sei como a ciência define este tipo de crise. Eu entendo como aquele momento em que a gente olha os carros passando na rua, as árvores, as pessoas andando na Paulista, baixa um exú socrático e nos perguntamos: o que é o mundo, afinal? Quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Nesta toada entediante vai minha vida: do videogame para o livro, do livro pro videogame, do videogame pra Copa, da Copa pro site do Banco Central que não me chama pra tomar posse e eu, para evitar o enlouquecimento precoce, sem querer me voluntariar para a campanha do Celso Russomano ao governo, só para encher o saco dos meus amigos de esquerda que me enchem o saco porque vou votar no Serra, vou escrever alguma coisa sobre estas coisas todas e rezar para que haja alguma conexão entre elas. Como diria Jerry Seinfeld em um dos meus episódios favoritos: “Prognosis negative”.

Relendo uma das apostilas concedidas durante o curso de formação em Brasília, uma compilação de notícias de jornal envolvendo o Banco Central, achei algo interessantíssimo que na época me passou batido. Num dos picos da crise financeira internacional de 2008, após a quebra do Lehman Brothers, o governo Lula cogitou seriamente demitir Henrique Meirelles e substituí-lo por Luiz Gonzaga Belluzzo. A julgar pela situação do glorioso Palmares, chega a dar arrepios pensar no que teria acontecido, mas isso é o de menos. O de mais é o motivo: o embate entre os desenvolvimentistas do Ministério da Fazenda e os neoliberais do Banco Central. Uma rixa antiga, longe de ser exclusividade do atual governo. Menos ainda do Brasil. Apesar do meu santo estar em pé de guerra com os santos do Nosso Guia desde que ele chegou ao poder pela primeira vez (com o meu voto, diga-se de passagem), não posso deixar de reconhecer que o cara é extremamente inteligente. Já dizia o Socrátes, safo é quem sabe que não sabe nada. Lula voltou atrás na última hora e manteve Meirelles no cargo.

Ao invés de vomitar minha opinião sobre o tema, prefiro seguir na busca de um blog o menos jornalístico possível. Quero ser anti-cagação de regra (como se isso fosse possível). Prefiro tentar um exercício parecido com o que fazem os economistas: filosofar sobre o assunto simplificando o modelo.

Estudo de Caso A - Cauã e a família neoliberal

Cauã era filho de Margarida, doutora em antropologia pela USP, e Jan Malbec, francês naturalizado e naturalista apaixonado pela Mata Atlântica. Aos quinze anos já não suportava ouvir falar de Marx, de Levi Strauss, da anistia, do LP “Transa” do Caetano. Comprou um ventilador com cinco velocidades para dispersar a marofa do apartamento. Pediu aos pais, de joelhos, que o tirassem do Equipe e o deixassem estudar no Bandeirantes. Margarida chorou de decepção, mas Jan entendeu que o filho deveria escolher seu caminho. Com vinte e dois anos Cauã estava formado na GV e efetivado numa multinacional de consultoria. Aos vinte e oito casou-se com Diana, psicóloga, paixão remanescente dos tempos do Equipe.

O primeiro conflito do casal foi por conta do apartamento. Sua linda esposa queria morar em Perdizes, ou na Vila Beatriz, mais chique e mais alternativa do que a Madalena. Cauã bateu o pé. Comprou um apartamento de setenta metros quadrados e dois dormitórios na Vila Mascote, fundamentado em cinco planilhas detalhando, entre outras coisas, o percentual ideal de endividamento de um casal em começo de carreira e um estudo comparativo do potencial de valorização imobiliária dos bairros de São Paulo. Antes das bodas de algodão, já tinham seguro de vida, plano de previdência complementar e um fundo especial para a faculdade dos futuros filhos.

Os filhos vieram e foram denominados Carolina e Ricardo. Nada de nomes alternativos de filho de psicóloga. A gestão do lar passou a ser executada por Adjane, uma moça de vinte e três anos formada em Turismo na UNIBAN. Diana disse nunca ter visto na vida uma empregada doméstica com curso superior. Cauã deu de ombros e a apelidou carinhosamente de “État”. Explicou que os dois deveriam estar focados em suas atividades profissionais, com o mínimo possível de intervenção ou mesmo interrupção. Para isso precisavam de uma pessoa qualificada para executar poucas atividades, todas essenciais, de maneira eficientíssima. Adjane tinha um excelente salário, mas o benefício tinha como condição a freqüência e o desempenho exemplar em cursos técnicos do SENAC como “Culinária refinada e saudável”. Não satisfeito, Cauã contratou mais um auxiliar. Seu Alberto, contador e economista, passou a ser o responsável pelo planejamento financeiro e tributário do lar. Logo ficou conhecido como “nosso pequeno bundesbank”. Diana passou a ser a primeira psicóloga de São Paulo a emitir nota fiscal e recolher imposto de renda.

Best Case Scenario (Este título tem que ser em inglês - afinal, a família é neoliberal)

Cauã e Diana se aposentam felizes, ambos referências em suas áreas de atuação. Compram um bela casa em Miami, onde passam a maior parte do tempo. Ricardo segue o rumo do pai e também se forma na GV. Carolina não se adapta direito ao colégio, sonha ser bailarina e, graças ao fundo de investimento dos pais, realiza seu sonho e muda-se para Praga. Adjane termina seu mestrado em Turismo na PUC e monta uma pousada na Bahia.

Worst Case Scenario (Idem)

Diana entra em crise existencial devido à absoluta ausência de problemas domésticos. Foge com um paciente de vinte e cinco anos, bipolar, viciado em jogo e sexo. Seu Adalberto, advogado, primo do seu Alberto, manda bem na vara da família e Diana leva mais da metade do patrimônio. Cauã passa a achar que não curtiu a vida o suficiente, compra uma BMW conversível para passear com Adjane e Carina, melhores amigas de sua filha Carolina. Esta, por sua vez, se revolta com pai, termina o curso de História na PUC e se candidata a vereadora pelo PSOL. Ricardo muda de nome e endereço: mora no México, integra uma banda de música havaiana e é conhecido como “Humaikê”.

Estudo de Caso B – Luis Felipe Vasconcelos e a família desenvolvimentista

Luiz Felipe era filho de Ana Beatriz Coelho Neves, membro ilustre de uma família de fazendeiros de Ribeirão Preto, e Luis Carlos Vasconcelos, industrial. Aos quinze anos já não suportava mais ouvir falar da falta de uma reforma tributária decente nesse país, de bolsas Louis Vuitton e do LP “Ida e Volta” do príncipe Ronnie Von. Aturou as aulas e os colegas do Santa Cruz até o vestibular. Optou pelo curso de economia da UNICAMP, saiu de casa e procurava visitar os pais somente nas datas imprescindíveis. Com os colegas de república fundou o grupo INICEPAL (Iniciantes da CEPAL. O nome original, CEPAL Júnior, foi vetado e considerado coisa de imperialista). Apaixonou-se perdidamente, depois de uma balada farta de maconha, cerveja barata e músicas do Gil, por Tatiane, morena alta e charmosa, garçonete do “Gordão” de Campinas.

Logo se casaram. Adquiriram boa renda mensal quando Luiz Felipe passou no concurso público do IPEA e Tatiane tornou-se técnica da Justiça do Trabalho de Campinas, graças às aulas caseiras do marido. Mal recebera o segundo holerite, Luiz Felipe decidiu pela compra de uma ampla casa de quatro dormitórios em Sousas, financiada pela Caixa em quarenta e oito anos. Tudo pela qualidade de vida dos três filhos que logo vieram: Lua, Tupã e Aquiles. Para cuidar da casa, trouxe a família de Alcebíades, um dos filhos do velho capataz da fazenda de seu pai.

As crianças todas, filhos de Luiz Felipe e Alcebíades, foram educadas na mesma escola particular, de orientação artística, livre e democrática. À tarde cada criança estudava o instrumento musical de sua escolha. Em seguida, um trabalho coletivo de expressão corporal solta e teatro, sob orientação de um filósofo finlandês radicado em Campinas. A esposa de Alcebíades tinha completa autonomia da gestão da casa. Cuidava de tudo. Não era lá muito eficiente, mas sempre sorria carinhosa e se destacava no tempero caseiro. Vira e mexe comprava demais no supermercado e as coisas estragavam. Alcebíades supostamente controlava as contas numa mesinha e num arquivo daqueles de ferro cinza, tudo no quartinho debaixo da escada. Tatiane, na verdade, nunca entendeu muito bem o que era aquela coisa toda, mas gostava de papear com as amigas do Tribunal do Trabalho e de fazer compras no Shopping Dom Pedro todo fim de semana. Uma vez por ano a família decidia, por sufrágio em dois turnos, a viagem internacional que fariam nas férias.

Melhor Cenário

Luiz Felipe descobre, absolutamente surpreso, que está completamente falido aos quarenta e oito anos. O contador contratado a contragosto para substituir Alcebíades demonstra na ponta do lápis que suas dívidas são equivalentes ao salário somado dos cônjuges, trazido a valor presente, nos próximos quinze anos. Mas neste mesmo dia, numa reunião familiar onde todos debatem os problemas de forma informal e em círculo, ponderam que para tudo se dá jeito. Lua já é professora de Antropologia na universidade, Tupã é violista da OSESP e até o pequeno Aquiles está bem preparado para o concurso iminente da Petrobrás. Os filhos de Alcebíades, também todos encaminhados, se prontificam para o que der e vier. Tatiane sorri com lágrimas nos olhos e propõe uma comemoração em família no “Rei do Bacalhau”, desde que Lua possa pagar a conta no cartão de crédito, com vencimento no dia 30.

Pior Cenário

Luiz Felipe descobre, absolutamente surpreso, que está completamente falido aos quarenta e oito anos. O contador contratado a contragosto para substituir Alcebíades demonstra na ponta do lápis que suas dívidas são equivalentes ao salário somado dos cônjuges, trazido a valor presente, nos próximos quinze anos. Lua se revolta com a situação, afinal não conseguia entender como ninguém se interessava em patrocinar sua exposição de fotografia das tribos de Rondônia. Contava com o dinheiro do pai. Como assim não vai rolar? Tupã ainda não tinha se decidido entre a gaita em lá menor e o oboé quando recebeu a notícia. O pobre Aquiles usava o dinheiro do cursinho de concurso público para comprar fumo com a galera de Vinhedo. Os três filhos crucificam os pais sem dó: a falta de grana veio do financiamento dos filhos do caseiro. Estavam todos morando em São Paulo, trabalhando em bancos e empresas fabricantes de soja transgênica. Tatiane fica com medo de não ter mais dinheiro para freqüentar o Shopping e foge com o dono da lanchonete “Gordão”. Alcebíades pede demissão e vai trabalhar alí com o pessoal do condomínio. Luiz Felipe muda-se para uma quitinete no centro de Campinas onde, no lugar da televisão, guarda com carinho os escritos completos de Marx e Keynes.

25.5.10

Brasília, primeiras impressões

Antes de embarcar para a capital federal, depois de cruzar o Mauro Silva nos corredores de Congonhas – ele mesmo, o “Gigaaaaante” do Galvão Bueno na Copa de 1994 – quase perco o vôo. Estava a conferir mentalmente pela quatrocentésima vez o chéquilisti de documentos, peças de vestuário e higiene. Não percebi minha solidão no portão 11 enquanto a GOL já transferira, sem avisar, o embarque para o portão 12. Não pude nem desopilar o fígado na funcionária, o avião inteiro me esperava. Consolo foi lembrar que o psiquiatra me concedeu o atestado de sanidade mental sem perceber que sou uma versão mais jovem, e com um pouco mais de cabelo, de Jack Nicholson em “As good as it gets” (em português o filme se chama “Melhor impossível” e figura altivo entre o 0,5% de títulos de filme adequadamente traduzidos no Brasil).

Vôo tranqüilo, pousamos em paz num dia ensolarado com céu de Brasília, aquele típico, da música do Djavan. Não foi suficiente para o pequeno Jack (como estamos em tempo de Copa do Mundo, me permito me referir a mim mesmo na terceira pessoa). O disco rígido só abria o vídeo da sensação de sufoco e tontura no palácio do Itamaraty, há uns dez anos. Ou a umidade do ar estava abaixo de 10% ou eu tive um efeito retardado das atividades lúdicas do ônibus da faculdade de Relações Internacionais da PUC-SP. Enfim, a lembrança era desagradável, inútil e perdeu a batalha para Brasília que estava muito bem, obrigado, com umidade, temperatura e amigos queridos suficientes para apaziguar um paulistano neurótico.

Felizmente, como diria minha vó Dinda, o mundo gira e a Lusitana roda. A vida nos presenteia com ciclos. A cada quatro ou cinco anos a rede Globo evoca uma novela com o sotaque italiano de proveta. Mais ou menos no mesmo ritmo eu encontro alguns amigos e, ao contrário das novelas, fico feliz de ver que tudo continua igual. No último domingo estive com o Josino tomando uma cerveja no Beirute, o mesmo amigo da PUC que me acompanhou na primeira visita. Lá pelo final dos anos 90 fomos representantes do Brasil no simulado do Conselho de Segurança da ONU promovido pela faculdade de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Se eu soubesse as presepadas que “Nosso Guia” faria para dar ao assento um certo relevo no mundo real futuro, provavelmente teria escolhido representar o Chipre, cadeira injustamente alocada a uma faculdade particular do interior do Paraná.

As primeiras voltas de carro por Brasília são como um carrinho da Casa do Terror no Playcenter. As tesourinhas e as quadras parecidas dão a sensação de estar rodando, indo e voltando sem sair do lugar. Parece um pouco com Alice no País das Maravilhas também. As portas e trilhas parecem todas iguais de fora, mas se você tem coragem de entrar, a personalidade das pessoas faz os lugares, as coisas e as conversas diferentes. E os nomes das ruas e das quadras? SQN 216, SQS 418... Faço até questão de reproduzir o endereço do meu curso de amanhã: BRASIL 21, SHS, QUADRA 6, LOTE 1, CONJUNTO A, BLOCO G. Jesus... Por que não incluir o TERCEIRO ANDAR, SALA 419, LADO ESQUERDO, CADEIRA 1247? O pior para um discípulo do Bexiga (e imagino que para um de Copacabana também) é perder aquela sensação de circular e morar em nomes de vultos, data históricas, desembargadores com sete sobrenomes.

De resto só sei o seguinte. Estou na casa da Isadora, uma amiga querida que me recebeu com o maior carinho. A casa também é da Mafalda, não é a mesma do Quino, apesar de inspirada nela. Uma pastora alemã legítima, apesar das madames invejosas, mulheres de deputados, a acusarem de ter um pé na cozinha. E também sei que não poderia faltar um final filosófico cabeça no blog do pequeno Jack. A culpa é de vocês, seguidores. Ninguém mandou menosprezar meus geniais contos e dar ibope apenas a estas crônicas cotidianas de madrugada entediada. Os contos estão guardados a sete chaves e só poderão ser lidos quando a Cia. das Letras me descobrir (Comentário 1: Esperem sentados. Comentário 2: Chorei! Diria meu amigo Peter). Mas vamos ao final cabeça. O mais incrível de Brasília, para o pequeno Jack, é comprovar a idéia de Niemayer e Lúcio Costa. Por aqui, não importa o que aconteça, sempre dá pra ver o horizonte.

7.5.10

Criadouro de perdedoures

Um dia meu amigo Jader me disse uma frase que nunca esqueci. “Nossos amigos são todos muito inteligentes. Mas ninguém cria nada, nós só consumimos”. A memória é uma coisa engraçada. Não tenho absolutamente nenhuma lembrança do dia em que ele me disse isso, do lugar onde nós estávamos ou do contexto da conversa. Mas a frase ficou e me martelou anos a fio.

Hoje assisti pela primeira vez um filme do Costa Gravas. Por ironia do destino, aluguei o filme sem saber que ele era grego, justamente da terra que pode ser o estopim de uma nova crise mundial. "O Corte” fala de um engenheiro especializado na indústria de papel que perde o emprego após quinze anos de dedicação à empresa. Depois de dois anos desempregado, ele simula a existência de uma indústria de papéis para receber o currículo de seus principais concorrentes. E começa a assassinar todos eles. A cena que mais me abalou foi a entrevista que ele faz, mais ou menos no meio da série de mortes. A entrevistadora faz um comentário torto e ele pensa: “Para sua sorte eu não trouxe a arma para a entrevista”. Felizmente nunca quis matar nenhuma entrevistadora, mas tive experiências humilhantes e pensamentos agressivos. O recrutamento de pessoas, para a maioria das empresas, é uma atividade menor, como faxina de banheiros e serviços de “help-desk”. Foi terceirizado. Nesse período eu não fui chamado por nenhuma empresa, mas recebi dezenas de chamados de consultorias de recursos humanos. Cinco meses depois de preencher formulários psicológicos, fazer redações e provas de inglês, percebi que não ia suportar. A única saída era um concurso público.

Esta foi outra experiência engraçada. Fiz vária provas pra treinar antes de tentar a sério a prova do Banco Central, mesmo porque não sabia quando ela ia acontecer. No começo achei que minha memória não funcionava mais direito. Fiquei paranóico achando que as drogas da adolescência e o consumo de cerveja já tinham fritado todos os meus neurônios e eu nunca mais seria capaz de ter o desempenho dos anos dourados do Bandeirantes. Mas o mais curioso era observar a cara dos candidatos nos dias de prova. Fora os que tinham cara evidente de turista, todos os balzaquianos como eu pareciam ter uma faixa na testa: “Fui mal sucedido no setor privado”. Eu brincava de imaginar quem era médico, quem era engenheiro, quem era tarado, quem era gênio incompreendido. Tentava rir da minha própria tragédia e todo tempo, todo tempo mesmo, eu cantava na cabeça a música “Loser” do Beck. Foi a minha amiga Mari Paoli, nos distantes anos 90, quem me mostrou que o refrão era em português (ou em espanhol, que para americano é a mesma coisa). “Sou... um perdedor. I’m a loser, baby. So why don’t you kill me?”.



O Beck gostava mesmo de música brasileira. Os ex-alunos do Bandeirantes que acompanham o Blog podem ver que nosso amigo Alan Dias participa do clipe, tocando sua guitarra no telhado.

Mas voltando ao Jader, que foi a inspiração inicial, a frase dele continua me martelando e espero que continue pra sempre. Tive que trabalhar dez anos em empresas pra entender o que ele quis dizer e talvez a resposta esteja na diferença entre criar e produzir. Eu produzi diversos relatórios, planilhas, cálculos, conferências (o famoso “bate” dos cornos bancários), contabilizações e propus melhorias operacionais. O filtro fino da minha memória, aquele que guarda frases como a do Jader, não deixou passar nada. Não tenho nada pra escrever nesse blog, nenhuma inovação, nenhuma descoberta, nenhuma contribuição. Nada interessante. Nada que me dê tesão de lembrar. O executivo assassino do Costa Gravas diz na terapia de casal que a esposa o obriga a ir: “Eu não sou nada sem o meu trabalho. Nada!”. E eu me pergunto agora o que eu era com o meu trabalho.

Mais irônico ainda é pensar que o inchaço do setor público, que eu tanto critico, entre tantas outras coisas do governo do “Nosso Guia”, no meio da minha ilusão liberal do estado mínimo, me tirou da aflição, da violência de não ter dinheiro pra pagar as próprias contas, da possibilidade de enlouquecer como o engenheiro da indústria de papéis. Não tenho nenhuma dúvida de que o capitalismo liberal é melhor do que o socialismo, especialmente do que o nosso socialismo “bolivariano-chavista”, para produzir mais e melhor. Só não sei como separar produção de criação. Faz tempo que os americanos, que são muito melhores, como diziam os Sobrinhos do Ataíde, fizeram as duas coisas parecerem a mesma coisa. Até criaram (não produziram) o termo “Indústria Cultural”. Mas não adianta, não é a mesma coisa. O tesão não é o mesmo.

23.4.10

Bússola de escritor

"(...) Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nêle o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião."

Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas

3.4.10

Terapias

Um dia desses, almoçando e tomando chopp com amigos, a Tatiana me falou de uma série de televisão. Chama-se “In treatment”, passa na HBO. Minha compulsão televisiva tem espaço até para as séries questionáveis, às vezes perco tempo assistindo “CSI Miami” e “Supernatural”. Mas a HBO faz séries incríveis. Uma delas, imperdível, com apenas sete episódios, é “John Adams”, a história do segundo presidente americano. A ideia de contar a história da independência dos Estados Unidos do ponto de vista de um personagem relegado a um certo segundo plano pela História é genial. E a interpretação do Paul Giamatti é incrível, como de costume.

Outra série legal foi “Six feet under”. Outra vez a ideia básica já é boa demais: uma família vivendo no mesmo espaço de uma casa funerária. Num andar o quarta da filha caçula, noutro o salão azulejado onde se drena o sangue dos defuntos. As tentativas inúteis de superar as neuroses do cotidiano temperadas com formol, arranjos de flores sofríveis e catálogos de caixão.

“In treatment” é a história de um psicoterapeuta de meia idade lidando com os dramas dos pacientes e os seus próprios ao mesmo tempo, volta e meia eles se misturam e o resultado é muito interessante. Cada episódio é uma sessão completa de terapia. A série tem ainda uma coisa inovadora no gênero, um ciclo de cinco episódios, quatro pacientes e, por fim, a sessão do terapeuta com sua supervisora. À medida em que os ciclos se repetem, é possível perceber a evolução do processo terapêutico e alguns efeitos concretos na rotina de todos.

Esta série me fez lembrar das minhas próprias experiências com a terapia. Começou quando eu era uma criança gaguejante. Aliás, eu ainda sou uma criança que gagueja aos trinta e três anos. Despertou-se uma preocupação natural nos meus pais de que algo poderia estar errado. Um dia me vi num consultório com uma mulher acolhedora, devia ter mais de quarenta e cinco anos, cabelos longos e escuros com alguns fios grisalhos. Lembro vagamente do meu medo de criança ao ser levado para um tratamento, como se a minha hesitação para falar fosse um sintoma de algo maior. O consultório ficava num bairro distante e mais arborizado e, dentro do meu mundo de condomínio, o trajeto parecia uma viagem a algum sítio, mesmo que a minha referência de sítio fosse a do Pica-Pau Amarelo.

Essa sensação se quebrou na sala de espera, aquele ambiente de impaciência, revistas velhas, recepcionistas mal remuneradas e um coleguinha paciente me olhando como se dissesse: você acha que tem problema, gaguinho? Olha só pra mim? A sala do consultório tinha tudo para fazer uma criança feliz. Almofadas coloridas, aconchegantes, brinquedos educativos, como o céu dos humanos mortos prematuramente. Minha única lembrança é a cena onde eu e a terapeuta de cabelos compridos estamos sentados de pernas cruzadas jogando mico-preto no baralho. Logo percebi que não tinha a mínima graça jogar mico-preto de dois, afinal a graça do jogo é foder a pessoa ao lado passando a ela o mico, sem que os outros jogadores saibam.

Até hoje não sei como, mas de alguma maneira passei à minha mãe a mensagem de que aquilo não estava valendo o que hoje seria uns duzentos reais a hora. Talvez ela e a terapeuta tenham subestimado minha safadeza infantil. Alguns anos mais tarde houve uma tentativa similar com uma fonoaudióloga. Me lembro de ter dito a minha mãe que eu definitivamente preferia continuar gago e usar aquele tempo com qualquer outra coisa. Ela respeitou essa decisão. Essa lembrança é tão forte que eu ainda visualizo o carro dela virando a esquina da Paulista com a Consolação no momento em que eu disse isso.

Minha segunda experiência com terapia foi depois de entrar na faculdade. Esse foi um período curioso. Foi como se eu flutuasse pela vida. Como aquelas histórias dos mortos que se libertam do corpo e ficam vagando pela superfície terrestre, meio sem saber o que fazer antes de encontrar o túnel e seguir em direção à luz. Naquele tempo o que importava era passar no vestibular, eu passei e me dei ao luxo de escolher pra onde ir. Com dezessete anos. Acho que passei muito rápido da repressão total para a liberdade total. Essa história dá pano pra manga para uma outra crônica, mas o importante é a transição bizarra, como uma borboleta ao avesso, de bom aluno do Colégio Bandeirantes para alma penada da Faculdade de Administração da USP. Meus colegas de FEA deviam me achar meio retardado, ou drogado, ou coisa parecida. Lá eu tive minha primeira experiência competitiva estudantil frustrada: tirar 0,8 numa prova. Microeconomia. Virei um mito na classe. Na verdade o mestre teve a pachorra de me dar a nota zero vírgula oitocentos e vinte e cinco, tornando a minha existência enquanto piada ainda mais surrealista.

Mais ou menos nessa época, comecei a fazer terapia com um velho amigo do meu pai. Ele é especializado numa técnica chamada Psicodrama. Não tive iniciativa ou maturidade pra me aprofundar nisso com ele, apesar dos reiterados convites. Me arrependo, acho que teria sido uma experiência bem interessante. Traz uma sensação de queria ter trinta e três anos quando tinha vinte, aquele roteiro de filme de sessão da tarde. Mesmo assim o bate-papo foi bom o suficiente para me trazer de volta à Terra, diminuir a ansiedade e me fazer decidir a arriscar a sorte no vestibular do curso de Relações Internacionais da PUC-SP (também conhecido na época como “Turismo”, “Comércio Exterior”, “Relações Públicas” ou ainda “Relações Espaciais”, na ironia arrojada do meu amigo Eduardo Bodra).

Veio a faculdade de Relações Internacionais e com ela uma mistura de felicidade e bizarrices misturadas. Lá eu encontrei um ambiente mais próximo do que eu sonhava, uma faculdade onde as pessoas discutiam as coisas que eu julgava realmente importantes. Ao mesmo tempo, era engraçado como a FEA já tinha me contaminado com um certo pragmatismo. Tenho certeza de que não teria aproveitado tanto a PUC se não tivesse esse vírus, uma busca de objetividade em qualquer lugar, mesmo numa aula de antropologia de primeiro ano. Esquizofrênico, eu buscava o esquerdismo da adolescência e dialogava com o diabinho economista do lado direito do ombro dizendo “acorda, idiota, esse papo de intelectual não leva a nada”. A PUC ia de vento em popa, ótimas notas, aulas interessantes, enquanto a FEA ia a duras penas. Nas aulas de teoria de administração, a PUC me fazia perceber nitidamente a mediocridade intelectual de alguns executivos de sucesso que nos davam aulas na FEA. Uma aula sobre Marx, vomitada num conjunto de transparências de quinta categoria, ministrada pelo vice-presidente de uma das mais respeitadas empresas de consultoria do Brasil e do mundo, me fez ver que alguma coisa estava estranha. Durkheim e Raymond Aron talvez não estivessem muito propensos a contribuir para a obesidade da minha conta bancária.

No meio desse tempo tão interessante, eu tive meu primeiro sinal inequívoco da coqueluche dos terapeutas: sintomas de depressão. Um dia, horas antes da prova de Ciência Política, peguei o ônibus, desci na Cardoso de Almeida, tirei as cópias ilegais de capítulos de livro legalizadas pela Universidade e fui pra biblioteca estudar. Ali tive uma experiência ao mesmo tempo horrível e fundamental. Do nada, senti um desespero. Uma sensação de medo absurda, forte e sem razão. Aquele diagnóstico que hoje eu sei ser algo parecido com uma síndrome de pânico. Na hora meu impulso foi pegar um ficha da mochila e ligar para o meu pai. Não sei porque desisti. Parei pra pensar num canto e me disse: não é possível, uma hora isso vai passar. Passou. Fiz a prova e ainda tirei uma nota boa. Durante os três anos seguintes pensei muito sobre esse dia, tentando digerir aquilo. Eu tentava provar pra mim mesmo que era uma pessoa saudável e tinha meus problemas como todo mundo.

Depois de formado na PUC, lá pelo fim de 1999 e começo do ano 2000, tive muita dificuldade pra conseguir o primeiro emprego. Criei um ódio incurável pelas dinâmicas de grupo e pelas consultoras de recursos humanos. Lá pelo meio do ano, ainda sem conseguir nada, dei uma desanimada meio acima do normal. Acabei voltando a fazer terapia. A psicóloga, por coincidência, era especializada em depressão. Após as primeiras sessões ela já não tinha sombra de dúvida sobre a minha condição, confirmada inclusive por vários sintomas físicos. Por mais de um ano eu segui na terapia sem aceitar sua recomendação para procurar um médico e tomar algum medicamento. Nesse período ela conseguiu identificar, com uma competência incrível, uma série de comportamentos meus que talvez estivessem contribuindo para uma situação depressiva. A mais importante conclusão que nós chegamos juntos foi a de que eu era bonzinho demais. Eu sempre havia tido uma incapacidade patológica de dizer não às pessoas. Aquilo ficou muito enraizado, até hoje. Na época meus primeiros nãos quase me custaram um dos meus melhores amigos. Vários anos depois, meus nãos custaram o meu casamento. O poder e o estrago de se fazer menos concessões. Coincidência ou não, depois deste ano de terapia consegui meu primeiro emprego, depois de enfrentar mais uma horrenda dinâmica de grupo.

Aceitar a depressão como uma doença qualquer, como asma ou diabetes, foi uma experiência interessante também. É incrível como esse preconceito, que eu mesmo tinha, ainda é muito forte. A maioria dos poucos amigos mais íntimos para quem eu confidenciei que tomava remédios procurando administrar minha depressão me olharam com uma cara meio de cú, meio condescendentes, como se eu tivesse confessado ser cleptomaníaco, ninfomaníaco ou torcedor da Portuguesa. Na minha cabeça, remédios para depressão eram algo que me faria fugir da realidade, ficar chapadão, como um baseado ou umas doses de vodka. O engraçado é que o efeito, pelo menos para mim, foi justamente o oposto: eu me senti mais bem disposto fisicamente e isso me ajudava a encarar os problemas bem concretos da vida com mais disposição.

Da mesma maneira as terapias, como a série “In treatment” ajuda a confirmar, não ajudam ninguém a resolver seus problemas, ajudam a sobreviver a eles. Definitivamente não é pouco. Engraçado pensar nisso, acho que algumas pessoas às vezes procuram uma terapia (e os remédios) em busca de uma cura. Durante minha experiência mais recente, comecei uma terapia depois da morte do papai e da minha separação. Depois de alguns meses percebi que apesar das ótimas conversas com a terapeuta e do alívio momentâneo que as sessões me causavam, eu não estava disposto a me conhecer melhor naquele momento. Não havia cura para as duas questões que me incomodavam, eram duas mortes, coisas que nunca mais voltariam. Preferi aceitar o emprego na AmBev e a mudança pra Jaguariúna, um auto-exílio totalmente consciente, a maneira que eu encontrei de fugir da minha rotina anterior e dar tempo para a ferida cicatrizar. Inventei pra mim mesmo uma terapia através da não-terapia. Meio que deu certo. Mas não tenho certeza se não teria sido melhor um enfrentamento. Bem ou mal, pelo menos me fez ter tranquilidade suficiente para, hoje, sentar e escrever sobre o assunto. Talvez eu esteja pronto para a terapia outra vez.

27.1.10

Geografia espiritual

De repente, o Haiti. O terremoto mexeu com todo mundo, creio eu, de alguma maneira. Pensei nisso durante o dia surrealista que tive na última terça-feira. Depois de um feriado sensacional na praia com amigos queridos do colégio que não via há meses ou anos, voltei revigorado para São Paulo. Ainda pela manhã, acordei para mais uma entrevista de emprego em uma consultoria de RH que não ia dar em nada - “same old shit”, eu pensei. Mas essa deu. Saí de lá sem nada formalizado, e com a sensação de que seria contratado - diferente do jeito que saí das quinhentas entrevistas que fiz nos últimos dez meses. Essa é uma das vantagens do tempo, de estar mais gordo e careca. O Ronaldo pode estar mais gordo, mas sabe exatamente quando vai marcar o gol três segundos antes de qualquer um.

Apesar desta boa notícia, engoli um Big Mac e parti para outra entrevista, desta vez no Morumbi. Eu me perdi,  praguejei por não ter dinheiro pra comprar um GPS e, de quebra, fui parado por uma blitz da PM que me aplicou uma singela multa de 550 reais por falta de inspeção veicular ambiental. Logo em seguida começou mais uma chuva torrencial. Para onde quer que eu tentasse fugir, a CBN alertava um alagamento. Perdi a entrevista e nem liguei, o sensor metafísico já havia antecipado o fracasso. Agradeci a Deus por chegar em casa vivo.

E falando em Deus, é dele (ou dela) mesmo que eu queria falar. E do Haiti também. O disco “Tropicália 2” pode ter sido uma das piores coisas que Caetano e Gil já fizeram. Mas uma coisa é certa: “O Haiti é aqui" e  "O Haiti não é aqui”. Não sei se foi exatamente isso que eles quiseram dizer. Afinal, temos “investment grade”, pré-sal, banco central independente e somos futuros credores do FMI. Ao mesmo tempo, quando tenho medo de morrer pelo simples fato de estar com o carro parado do lado do rio Pinheiros, acho que o Haiti é aqui sim. Essa coisa toda me fez pensar: até que ponto estamos sob intervenção divina e até que ponto estamos pagando caro por nossas próprias cagadas?

Comecemos pela intervenção divina. O terremoto do Haiti gera um pensamento quase automático. Dentre tantos lugares no mundo pra acontecer um terremoto, dá-lhe Haiti. Dentre tantos crápulas no mundo que não fariam a menor falta, perdemos a Zilda Arns. Os ateus ficam mais convictos. Aí eu lembro de uma conversa com um parceiro de filosofia de botequim, meu tio Raul Lessa. Estávamos conversando sobre religião e ele me contou de um livro que tinha lido (não sei o nome nem o autor). O argumento principal era que Deus e o Universo, com sua característica caótica e aleatória, não podem ser a mesma coisa. “Deus não fica lá no céu”, ele dizia, “com uma cesta de cânceres pensando: vamos ver, hoje temos três de pâncreas. Esse aqui vai pro Seu Almeida lá de Birigui. Esse vai pro Sir Edward Willians, de Liverpool, e esse aqui vai pra aquele chinês safado que está merecendo faz tempo!”.

Sou filho de um pastor presbiteriano que tinha uma fé impressionante. Sou testemunha (mas não de Jeová) da transformação que a religião pode produzir. Cansei de ver meu pai, em situações dificílimas, orando, olhando para um quadrinho que dizia “The Lord Will Provide”, virar para o lado e dormir tranquilo. Também vi a paz que a religião trazia para a vida dele e a mesma paz que ele transmitia para várias pessoas que o conheciam e com ele conversavam. No entanto,  nunca consegui aceitar, como ele dizia, que o cristianismo era a única resposta e concordar com o segundo plano em que ele colocava as outras religiões.

Uma coisa que realmente impactou a minha religiosidade foi um livro do Rubem Alves que li chamado “O que é religião?”. Ele explica que o ser humano é o único ser vivo que tem consciência da própria existência e, por isso, o único que precisa buscar um sentido para ela. Uma eterna vítima da frustração e da neurose. O único que, às vezes, suicida-se. Acho que concordo com a visão dele de que Deus é uma eterna busca de resposta, uma busca impossível e necessária.

Deus aparece nos momentos raros e inexplicáveis de autêntica felicidade que vivemos em meio aos terremotos do Haiti e às enchentes da marginal Pinheiros. Nunca consegui encontrar a religiosidade do meu pai quando ele defendia a supremacia irrefutável do cristianismo ante a mediocridade dos budistas ou dos macumbeiros. Mas mantenho minha fé em dia quando lembro-me da maneira simples e sincera com que ele gostava de mim. Quando estávamos jantando no Sujinho às duas da manhã, ele me dizia: “Agora chega de conversa fiada. Quero saber de você. Me conta qualquer coisa de você”.

E agora chega a vez do contraponto: nossas próprias cagadas. Ainda que dê trabalho lidar com o caos do Universo, acho que o estrago que fazemos é ainda maior. É justo buscarmos um sentido para nossas vidas, só que faltou combinar com o síndico. O planetinha parece dar sinais de cansaço. A  turma da COP15 discute propostas e acordos como se houvesse opção. Como se o ladrão apontasse o 38 na nossa cabeça e a gente dissesse: “Pô, mas deixa dezinho pro busão!”. O terremoto do Haiti e a Dona Zilda talvez sejam obra do acaso, mas a enchente da marginal Pinheiros, para mim, não é. E janeiro atípico é conversa pra boi dormir.