27.1.10

Geografia espiritual

De repente, o Haiti. O terremoto mexeu com todo mundo, creio eu, de alguma maneira. Pensei nisso durante o dia surrealista que tive na última terça-feira. Depois de um feriado sensacional na praia com amigos queridos do colégio que não via há meses ou anos, voltei revigorado para São Paulo. Ainda pela manhã, acordei para mais uma entrevista de emprego em uma consultoria de RH que não ia dar em nada - “same old shit”, eu pensei. Mas essa deu. Saí de lá sem nada formalizado, e com a sensação de que seria contratado - diferente do jeito que saí das quinhentas entrevistas que fiz nos últimos dez meses. Essa é uma das vantagens do tempo, de estar mais gordo e careca. O Ronaldo pode estar mais gordo, mas sabe exatamente quando vai marcar o gol três segundos antes de qualquer um.

Apesar desta boa notícia, engoli um Big Mac e parti para outra entrevista, desta vez no Morumbi. Eu me perdi,  praguejei por não ter dinheiro pra comprar um GPS e, de quebra, fui parado por uma blitz da PM que me aplicou uma singela multa de 550 reais por falta de inspeção veicular ambiental. Logo em seguida começou mais uma chuva torrencial. Para onde quer que eu tentasse fugir, a CBN alertava um alagamento. Perdi a entrevista e nem liguei, o sensor metafísico já havia antecipado o fracasso. Agradeci a Deus por chegar em casa vivo.

E falando em Deus, é dele (ou dela) mesmo que eu queria falar. E do Haiti também. O disco “Tropicália 2” pode ter sido uma das piores coisas que Caetano e Gil já fizeram. Mas uma coisa é certa: “O Haiti é aqui" e  "O Haiti não é aqui”. Não sei se foi exatamente isso que eles quiseram dizer. Afinal, temos “investment grade”, pré-sal, banco central independente e somos futuros credores do FMI. Ao mesmo tempo, quando tenho medo de morrer pelo simples fato de estar com o carro parado do lado do rio Pinheiros, acho que o Haiti é aqui sim. Essa coisa toda me fez pensar: até que ponto estamos sob intervenção divina e até que ponto estamos pagando caro por nossas próprias cagadas?

Comecemos pela intervenção divina. O terremoto do Haiti gera um pensamento quase automático. Dentre tantos lugares no mundo pra acontecer um terremoto, dá-lhe Haiti. Dentre tantos crápulas no mundo que não fariam a menor falta, perdemos a Zilda Arns. Os ateus ficam mais convictos. Aí eu lembro de uma conversa com um parceiro de filosofia de botequim, meu tio Raul Lessa. Estávamos conversando sobre religião e ele me contou de um livro que tinha lido (não sei o nome nem o autor). O argumento principal era que Deus e o Universo, com sua característica caótica e aleatória, não podem ser a mesma coisa. “Deus não fica lá no céu”, ele dizia, “com uma cesta de cânceres pensando: vamos ver, hoje temos três de pâncreas. Esse aqui vai pro Seu Almeida lá de Birigui. Esse vai pro Sir Edward Willians, de Liverpool, e esse aqui vai pra aquele chinês safado que está merecendo faz tempo!”.

Sou filho de um pastor presbiteriano que tinha uma fé impressionante. Sou testemunha (mas não de Jeová) da transformação que a religião pode produzir. Cansei de ver meu pai, em situações dificílimas, orando, olhando para um quadrinho que dizia “The Lord Will Provide”, virar para o lado e dormir tranquilo. Também vi a paz que a religião trazia para a vida dele e a mesma paz que ele transmitia para várias pessoas que o conheciam e com ele conversavam. No entanto,  nunca consegui aceitar, como ele dizia, que o cristianismo era a única resposta e concordar com o segundo plano em que ele colocava as outras religiões.

Uma coisa que realmente impactou a minha religiosidade foi um livro do Rubem Alves que li chamado “O que é religião?”. Ele explica que o ser humano é o único ser vivo que tem consciência da própria existência e, por isso, o único que precisa buscar um sentido para ela. Uma eterna vítima da frustração e da neurose. O único que, às vezes, suicida-se. Acho que concordo com a visão dele de que Deus é uma eterna busca de resposta, uma busca impossível e necessária.

Deus aparece nos momentos raros e inexplicáveis de autêntica felicidade que vivemos em meio aos terremotos do Haiti e às enchentes da marginal Pinheiros. Nunca consegui encontrar a religiosidade do meu pai quando ele defendia a supremacia irrefutável do cristianismo ante a mediocridade dos budistas ou dos macumbeiros. Mas mantenho minha fé em dia quando lembro-me da maneira simples e sincera com que ele gostava de mim. Quando estávamos jantando no Sujinho às duas da manhã, ele me dizia: “Agora chega de conversa fiada. Quero saber de você. Me conta qualquer coisa de você”.

E agora chega a vez do contraponto: nossas próprias cagadas. Ainda que dê trabalho lidar com o caos do Universo, acho que o estrago que fazemos é ainda maior. É justo buscarmos um sentido para nossas vidas, só que faltou combinar com o síndico. O planetinha parece dar sinais de cansaço. A  turma da COP15 discute propostas e acordos como se houvesse opção. Como se o ladrão apontasse o 38 na nossa cabeça e a gente dissesse: “Pô, mas deixa dezinho pro busão!”. O terremoto do Haiti e a Dona Zilda talvez sejam obra do acaso, mas a enchente da marginal Pinheiros, para mim, não é. E janeiro atípico é conversa pra boi dormir.