23.4.10

Bússola de escritor

"(...) Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nêle o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião."

Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas

3.4.10

Terapias

Um dia desses, almoçando e tomando chopp com amigos, a Tatiana me falou de uma série de televisão. Chama-se “In treatment”, passa na HBO. Minha compulsão televisiva tem espaço até para as séries questionáveis, às vezes perco tempo assistindo “CSI Miami” e “Supernatural”. Mas a HBO faz séries incríveis. Uma delas, imperdível, com apenas sete episódios, é “John Adams”, a história do segundo presidente americano. A ideia de contar a história da independência dos Estados Unidos do ponto de vista de um personagem relegado a um certo segundo plano pela História é genial. E a interpretação do Paul Giamatti é incrível, como de costume.

Outra série legal foi “Six feet under”. Outra vez a ideia básica já é boa demais: uma família vivendo no mesmo espaço de uma casa funerária. Num andar o quarta da filha caçula, noutro o salão azulejado onde se drena o sangue dos defuntos. As tentativas inúteis de superar as neuroses do cotidiano temperadas com formol, arranjos de flores sofríveis e catálogos de caixão.

“In treatment” é a história de um psicoterapeuta de meia idade lidando com os dramas dos pacientes e os seus próprios ao mesmo tempo, volta e meia eles se misturam e o resultado é muito interessante. Cada episódio é uma sessão completa de terapia. A série tem ainda uma coisa inovadora no gênero, um ciclo de cinco episódios, quatro pacientes e, por fim, a sessão do terapeuta com sua supervisora. À medida em que os ciclos se repetem, é possível perceber a evolução do processo terapêutico e alguns efeitos concretos na rotina de todos.

Esta série me fez lembrar das minhas próprias experiências com a terapia. Começou quando eu era uma criança gaguejante. Aliás, eu ainda sou uma criança que gagueja aos trinta e três anos. Despertou-se uma preocupação natural nos meus pais de que algo poderia estar errado. Um dia me vi num consultório com uma mulher acolhedora, devia ter mais de quarenta e cinco anos, cabelos longos e escuros com alguns fios grisalhos. Lembro vagamente do meu medo de criança ao ser levado para um tratamento, como se a minha hesitação para falar fosse um sintoma de algo maior. O consultório ficava num bairro distante e mais arborizado e, dentro do meu mundo de condomínio, o trajeto parecia uma viagem a algum sítio, mesmo que a minha referência de sítio fosse a do Pica-Pau Amarelo.

Essa sensação se quebrou na sala de espera, aquele ambiente de impaciência, revistas velhas, recepcionistas mal remuneradas e um coleguinha paciente me olhando como se dissesse: você acha que tem problema, gaguinho? Olha só pra mim? A sala do consultório tinha tudo para fazer uma criança feliz. Almofadas coloridas, aconchegantes, brinquedos educativos, como o céu dos humanos mortos prematuramente. Minha única lembrança é a cena onde eu e a terapeuta de cabelos compridos estamos sentados de pernas cruzadas jogando mico-preto no baralho. Logo percebi que não tinha a mínima graça jogar mico-preto de dois, afinal a graça do jogo é foder a pessoa ao lado passando a ela o mico, sem que os outros jogadores saibam.

Até hoje não sei como, mas de alguma maneira passei à minha mãe a mensagem de que aquilo não estava valendo o que hoje seria uns duzentos reais a hora. Talvez ela e a terapeuta tenham subestimado minha safadeza infantil. Alguns anos mais tarde houve uma tentativa similar com uma fonoaudióloga. Me lembro de ter dito a minha mãe que eu definitivamente preferia continuar gago e usar aquele tempo com qualquer outra coisa. Ela respeitou essa decisão. Essa lembrança é tão forte que eu ainda visualizo o carro dela virando a esquina da Paulista com a Consolação no momento em que eu disse isso.

Minha segunda experiência com terapia foi depois de entrar na faculdade. Esse foi um período curioso. Foi como se eu flutuasse pela vida. Como aquelas histórias dos mortos que se libertam do corpo e ficam vagando pela superfície terrestre, meio sem saber o que fazer antes de encontrar o túnel e seguir em direção à luz. Naquele tempo o que importava era passar no vestibular, eu passei e me dei ao luxo de escolher pra onde ir. Com dezessete anos. Acho que passei muito rápido da repressão total para a liberdade total. Essa história dá pano pra manga para uma outra crônica, mas o importante é a transição bizarra, como uma borboleta ao avesso, de bom aluno do Colégio Bandeirantes para alma penada da Faculdade de Administração da USP. Meus colegas de FEA deviam me achar meio retardado, ou drogado, ou coisa parecida. Lá eu tive minha primeira experiência competitiva estudantil frustrada: tirar 0,8 numa prova. Microeconomia. Virei um mito na classe. Na verdade o mestre teve a pachorra de me dar a nota zero vírgula oitocentos e vinte e cinco, tornando a minha existência enquanto piada ainda mais surrealista.

Mais ou menos nessa época, comecei a fazer terapia com um velho amigo do meu pai. Ele é especializado numa técnica chamada Psicodrama. Não tive iniciativa ou maturidade pra me aprofundar nisso com ele, apesar dos reiterados convites. Me arrependo, acho que teria sido uma experiência bem interessante. Traz uma sensação de queria ter trinta e três anos quando tinha vinte, aquele roteiro de filme de sessão da tarde. Mesmo assim o bate-papo foi bom o suficiente para me trazer de volta à Terra, diminuir a ansiedade e me fazer decidir a arriscar a sorte no vestibular do curso de Relações Internacionais da PUC-SP (também conhecido na época como “Turismo”, “Comércio Exterior”, “Relações Públicas” ou ainda “Relações Espaciais”, na ironia arrojada do meu amigo Eduardo Bodra).

Veio a faculdade de Relações Internacionais e com ela uma mistura de felicidade e bizarrices misturadas. Lá eu encontrei um ambiente mais próximo do que eu sonhava, uma faculdade onde as pessoas discutiam as coisas que eu julgava realmente importantes. Ao mesmo tempo, era engraçado como a FEA já tinha me contaminado com um certo pragmatismo. Tenho certeza de que não teria aproveitado tanto a PUC se não tivesse esse vírus, uma busca de objetividade em qualquer lugar, mesmo numa aula de antropologia de primeiro ano. Esquizofrênico, eu buscava o esquerdismo da adolescência e dialogava com o diabinho economista do lado direito do ombro dizendo “acorda, idiota, esse papo de intelectual não leva a nada”. A PUC ia de vento em popa, ótimas notas, aulas interessantes, enquanto a FEA ia a duras penas. Nas aulas de teoria de administração, a PUC me fazia perceber nitidamente a mediocridade intelectual de alguns executivos de sucesso que nos davam aulas na FEA. Uma aula sobre Marx, vomitada num conjunto de transparências de quinta categoria, ministrada pelo vice-presidente de uma das mais respeitadas empresas de consultoria do Brasil e do mundo, me fez ver que alguma coisa estava estranha. Durkheim e Raymond Aron talvez não estivessem muito propensos a contribuir para a obesidade da minha conta bancária.

No meio desse tempo tão interessante, eu tive meu primeiro sinal inequívoco da coqueluche dos terapeutas: sintomas de depressão. Um dia, horas antes da prova de Ciência Política, peguei o ônibus, desci na Cardoso de Almeida, tirei as cópias ilegais de capítulos de livro legalizadas pela Universidade e fui pra biblioteca estudar. Ali tive uma experiência ao mesmo tempo horrível e fundamental. Do nada, senti um desespero. Uma sensação de medo absurda, forte e sem razão. Aquele diagnóstico que hoje eu sei ser algo parecido com uma síndrome de pânico. Na hora meu impulso foi pegar um ficha da mochila e ligar para o meu pai. Não sei porque desisti. Parei pra pensar num canto e me disse: não é possível, uma hora isso vai passar. Passou. Fiz a prova e ainda tirei uma nota boa. Durante os três anos seguintes pensei muito sobre esse dia, tentando digerir aquilo. Eu tentava provar pra mim mesmo que era uma pessoa saudável e tinha meus problemas como todo mundo.

Depois de formado na PUC, lá pelo fim de 1999 e começo do ano 2000, tive muita dificuldade pra conseguir o primeiro emprego. Criei um ódio incurável pelas dinâmicas de grupo e pelas consultoras de recursos humanos. Lá pelo meio do ano, ainda sem conseguir nada, dei uma desanimada meio acima do normal. Acabei voltando a fazer terapia. A psicóloga, por coincidência, era especializada em depressão. Após as primeiras sessões ela já não tinha sombra de dúvida sobre a minha condição, confirmada inclusive por vários sintomas físicos. Por mais de um ano eu segui na terapia sem aceitar sua recomendação para procurar um médico e tomar algum medicamento. Nesse período ela conseguiu identificar, com uma competência incrível, uma série de comportamentos meus que talvez estivessem contribuindo para uma situação depressiva. A mais importante conclusão que nós chegamos juntos foi a de que eu era bonzinho demais. Eu sempre havia tido uma incapacidade patológica de dizer não às pessoas. Aquilo ficou muito enraizado, até hoje. Na época meus primeiros nãos quase me custaram um dos meus melhores amigos. Vários anos depois, meus nãos custaram o meu casamento. O poder e o estrago de se fazer menos concessões. Coincidência ou não, depois deste ano de terapia consegui meu primeiro emprego, depois de enfrentar mais uma horrenda dinâmica de grupo.

Aceitar a depressão como uma doença qualquer, como asma ou diabetes, foi uma experiência interessante também. É incrível como esse preconceito, que eu mesmo tinha, ainda é muito forte. A maioria dos poucos amigos mais íntimos para quem eu confidenciei que tomava remédios procurando administrar minha depressão me olharam com uma cara meio de cú, meio condescendentes, como se eu tivesse confessado ser cleptomaníaco, ninfomaníaco ou torcedor da Portuguesa. Na minha cabeça, remédios para depressão eram algo que me faria fugir da realidade, ficar chapadão, como um baseado ou umas doses de vodka. O engraçado é que o efeito, pelo menos para mim, foi justamente o oposto: eu me senti mais bem disposto fisicamente e isso me ajudava a encarar os problemas bem concretos da vida com mais disposição.

Da mesma maneira as terapias, como a série “In treatment” ajuda a confirmar, não ajudam ninguém a resolver seus problemas, ajudam a sobreviver a eles. Definitivamente não é pouco. Engraçado pensar nisso, acho que algumas pessoas às vezes procuram uma terapia (e os remédios) em busca de uma cura. Durante minha experiência mais recente, comecei uma terapia depois da morte do papai e da minha separação. Depois de alguns meses percebi que apesar das ótimas conversas com a terapeuta e do alívio momentâneo que as sessões me causavam, eu não estava disposto a me conhecer melhor naquele momento. Não havia cura para as duas questões que me incomodavam, eram duas mortes, coisas que nunca mais voltariam. Preferi aceitar o emprego na AmBev e a mudança pra Jaguariúna, um auto-exílio totalmente consciente, a maneira que eu encontrei de fugir da minha rotina anterior e dar tempo para a ferida cicatrizar. Inventei pra mim mesmo uma terapia através da não-terapia. Meio que deu certo. Mas não tenho certeza se não teria sido melhor um enfrentamento. Bem ou mal, pelo menos me fez ter tranquilidade suficiente para, hoje, sentar e escrever sobre o assunto. Talvez eu esteja pronto para a terapia outra vez.