25.5.10

Brasília, primeiras impressões

Antes de embarcar para a capital federal, depois de cruzar o Mauro Silva nos corredores de Congonhas – ele mesmo, o “Gigaaaaante” do Galvão Bueno na Copa de 1994 – quase perco o vôo. Estava a conferir mentalmente pela quatrocentésima vez o chéquilisti de documentos, peças de vestuário e higiene. Não percebi minha solidão no portão 11 enquanto a GOL já transferira, sem avisar, o embarque para o portão 12. Não pude nem desopilar o fígado na funcionária, o avião inteiro me esperava. Consolo foi lembrar que o psiquiatra me concedeu o atestado de sanidade mental sem perceber que sou uma versão mais jovem, e com um pouco mais de cabelo, de Jack Nicholson em “As good as it gets” (em português o filme se chama “Melhor impossível” e figura altivo entre o 0,5% de títulos de filme adequadamente traduzidos no Brasil).

Vôo tranqüilo, pousamos em paz num dia ensolarado com céu de Brasília, aquele típico, da música do Djavan. Não foi suficiente para o pequeno Jack (como estamos em tempo de Copa do Mundo, me permito me referir a mim mesmo na terceira pessoa). O disco rígido só abria o vídeo da sensação de sufoco e tontura no palácio do Itamaraty, há uns dez anos. Ou a umidade do ar estava abaixo de 10% ou eu tive um efeito retardado das atividades lúdicas do ônibus da faculdade de Relações Internacionais da PUC-SP. Enfim, a lembrança era desagradável, inútil e perdeu a batalha para Brasília que estava muito bem, obrigado, com umidade, temperatura e amigos queridos suficientes para apaziguar um paulistano neurótico.

Felizmente, como diria minha vó Dinda, o mundo gira e a Lusitana roda. A vida nos presenteia com ciclos. A cada quatro ou cinco anos a rede Globo evoca uma novela com o sotaque italiano de proveta. Mais ou menos no mesmo ritmo eu encontro alguns amigos e, ao contrário das novelas, fico feliz de ver que tudo continua igual. No último domingo estive com o Josino tomando uma cerveja no Beirute, o mesmo amigo da PUC que me acompanhou na primeira visita. Lá pelo final dos anos 90 fomos representantes do Brasil no simulado do Conselho de Segurança da ONU promovido pela faculdade de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Se eu soubesse as presepadas que “Nosso Guia” faria para dar ao assento um certo relevo no mundo real futuro, provavelmente teria escolhido representar o Chipre, cadeira injustamente alocada a uma faculdade particular do interior do Paraná.

As primeiras voltas de carro por Brasília são como um carrinho da Casa do Terror no Playcenter. As tesourinhas e as quadras parecidas dão a sensação de estar rodando, indo e voltando sem sair do lugar. Parece um pouco com Alice no País das Maravilhas também. As portas e trilhas parecem todas iguais de fora, mas se você tem coragem de entrar, a personalidade das pessoas faz os lugares, as coisas e as conversas diferentes. E os nomes das ruas e das quadras? SQN 216, SQS 418... Faço até questão de reproduzir o endereço do meu curso de amanhã: BRASIL 21, SHS, QUADRA 6, LOTE 1, CONJUNTO A, BLOCO G. Jesus... Por que não incluir o TERCEIRO ANDAR, SALA 419, LADO ESQUERDO, CADEIRA 1247? O pior para um discípulo do Bexiga (e imagino que para um de Copacabana também) é perder aquela sensação de circular e morar em nomes de vultos, data históricas, desembargadores com sete sobrenomes.

De resto só sei o seguinte. Estou na casa da Isadora, uma amiga querida que me recebeu com o maior carinho. A casa também é da Mafalda, não é a mesma do Quino, apesar de inspirada nela. Uma pastora alemã legítima, apesar das madames invejosas, mulheres de deputados, a acusarem de ter um pé na cozinha. E também sei que não poderia faltar um final filosófico cabeça no blog do pequeno Jack. A culpa é de vocês, seguidores. Ninguém mandou menosprezar meus geniais contos e dar ibope apenas a estas crônicas cotidianas de madrugada entediada. Os contos estão guardados a sete chaves e só poderão ser lidos quando a Cia. das Letras me descobrir (Comentário 1: Esperem sentados. Comentário 2: Chorei! Diria meu amigo Peter). Mas vamos ao final cabeça. O mais incrível de Brasília, para o pequeno Jack, é comprovar a idéia de Niemayer e Lúcio Costa. Por aqui, não importa o que aconteça, sempre dá pra ver o horizonte.

7.5.10

Criadouro de perdedoures

Um dia meu amigo Jader me disse uma frase que nunca esqueci. “Nossos amigos são todos muito inteligentes. Mas ninguém cria nada, nós só consumimos”. A memória é uma coisa engraçada. Não tenho absolutamente nenhuma lembrança do dia em que ele me disse isso, do lugar onde nós estávamos ou do contexto da conversa. Mas a frase ficou e me martelou anos a fio.

Hoje assisti pela primeira vez um filme do Costa Gravas. Por ironia do destino, aluguei o filme sem saber que ele era grego, justamente da terra que pode ser o estopim de uma nova crise mundial. "O Corte” fala de um engenheiro especializado na indústria de papel que perde o emprego após quinze anos de dedicação à empresa. Depois de dois anos desempregado, ele simula a existência de uma indústria de papéis para receber o currículo de seus principais concorrentes. E começa a assassinar todos eles. A cena que mais me abalou foi a entrevista que ele faz, mais ou menos no meio da série de mortes. A entrevistadora faz um comentário torto e ele pensa: “Para sua sorte eu não trouxe a arma para a entrevista”. Felizmente nunca quis matar nenhuma entrevistadora, mas tive experiências humilhantes e pensamentos agressivos. O recrutamento de pessoas, para a maioria das empresas, é uma atividade menor, como faxina de banheiros e serviços de “help-desk”. Foi terceirizado. Nesse período eu não fui chamado por nenhuma empresa, mas recebi dezenas de chamados de consultorias de recursos humanos. Cinco meses depois de preencher formulários psicológicos, fazer redações e provas de inglês, percebi que não ia suportar. A única saída era um concurso público.

Esta foi outra experiência engraçada. Fiz vária provas pra treinar antes de tentar a sério a prova do Banco Central, mesmo porque não sabia quando ela ia acontecer. No começo achei que minha memória não funcionava mais direito. Fiquei paranóico achando que as drogas da adolescência e o consumo de cerveja já tinham fritado todos os meus neurônios e eu nunca mais seria capaz de ter o desempenho dos anos dourados do Bandeirantes. Mas o mais curioso era observar a cara dos candidatos nos dias de prova. Fora os que tinham cara evidente de turista, todos os balzaquianos como eu pareciam ter uma faixa na testa: “Fui mal sucedido no setor privado”. Eu brincava de imaginar quem era médico, quem era engenheiro, quem era tarado, quem era gênio incompreendido. Tentava rir da minha própria tragédia e todo tempo, todo tempo mesmo, eu cantava na cabeça a música “Loser” do Beck. Foi a minha amiga Mari Paoli, nos distantes anos 90, quem me mostrou que o refrão era em português (ou em espanhol, que para americano é a mesma coisa). “Sou... um perdedor. I’m a loser, baby. So why don’t you kill me?”.



O Beck gostava mesmo de música brasileira. Os ex-alunos do Bandeirantes que acompanham o Blog podem ver que nosso amigo Alan Dias participa do clipe, tocando sua guitarra no telhado.

Mas voltando ao Jader, que foi a inspiração inicial, a frase dele continua me martelando e espero que continue pra sempre. Tive que trabalhar dez anos em empresas pra entender o que ele quis dizer e talvez a resposta esteja na diferença entre criar e produzir. Eu produzi diversos relatórios, planilhas, cálculos, conferências (o famoso “bate” dos cornos bancários), contabilizações e propus melhorias operacionais. O filtro fino da minha memória, aquele que guarda frases como a do Jader, não deixou passar nada. Não tenho nada pra escrever nesse blog, nenhuma inovação, nenhuma descoberta, nenhuma contribuição. Nada interessante. Nada que me dê tesão de lembrar. O executivo assassino do Costa Gravas diz na terapia de casal que a esposa o obriga a ir: “Eu não sou nada sem o meu trabalho. Nada!”. E eu me pergunto agora o que eu era com o meu trabalho.

Mais irônico ainda é pensar que o inchaço do setor público, que eu tanto critico, entre tantas outras coisas do governo do “Nosso Guia”, no meio da minha ilusão liberal do estado mínimo, me tirou da aflição, da violência de não ter dinheiro pra pagar as próprias contas, da possibilidade de enlouquecer como o engenheiro da indústria de papéis. Não tenho nenhuma dúvida de que o capitalismo liberal é melhor do que o socialismo, especialmente do que o nosso socialismo “bolivariano-chavista”, para produzir mais e melhor. Só não sei como separar produção de criação. Faz tempo que os americanos, que são muito melhores, como diziam os Sobrinhos do Ataíde, fizeram as duas coisas parecerem a mesma coisa. Até criaram (não produziram) o termo “Indústria Cultural”. Mas não adianta, não é a mesma coisa. O tesão não é o mesmo.