7.5.10

Criadouro de perdedoures

Um dia meu amigo Jader me disse uma frase que nunca esqueci. “Nossos amigos são todos muito inteligentes. Mas ninguém cria nada, nós só consumimos”. A memória é uma coisa engraçada. Não tenho absolutamente nenhuma lembrança do dia em que ele me disse isso, do lugar onde nós estávamos ou do contexto da conversa. Mas a frase ficou e me martelou anos a fio.

Hoje assisti pela primeira vez um filme do Costa Gravas. Por ironia do destino, aluguei o filme sem saber que ele era grego, justamente da terra que pode ser o estopim de uma nova crise mundial. "O Corte” fala de um engenheiro especializado na indústria de papel que perde o emprego após quinze anos de dedicação à empresa. Depois de dois anos desempregado, ele simula a existência de uma indústria de papéis para receber o currículo de seus principais concorrentes. E começa a assassinar todos eles. A cena que mais me abalou foi a entrevista que ele faz, mais ou menos no meio da série de mortes. A entrevistadora faz um comentário torto e ele pensa: “Para sua sorte eu não trouxe a arma para a entrevista”. Felizmente nunca quis matar nenhuma entrevistadora, mas tive experiências humilhantes e pensamentos agressivos. O recrutamento de pessoas, para a maioria das empresas, é uma atividade menor, como faxina de banheiros e serviços de “help-desk”. Foi terceirizado. Nesse período eu não fui chamado por nenhuma empresa, mas recebi dezenas de chamados de consultorias de recursos humanos. Cinco meses depois de preencher formulários psicológicos, fazer redações e provas de inglês, percebi que não ia suportar. A única saída era um concurso público.

Esta foi outra experiência engraçada. Fiz vária provas pra treinar antes de tentar a sério a prova do Banco Central, mesmo porque não sabia quando ela ia acontecer. No começo achei que minha memória não funcionava mais direito. Fiquei paranóico achando que as drogas da adolescência e o consumo de cerveja já tinham fritado todos os meus neurônios e eu nunca mais seria capaz de ter o desempenho dos anos dourados do Bandeirantes. Mas o mais curioso era observar a cara dos candidatos nos dias de prova. Fora os que tinham cara evidente de turista, todos os balzaquianos como eu pareciam ter uma faixa na testa: “Fui mal sucedido no setor privado”. Eu brincava de imaginar quem era médico, quem era engenheiro, quem era tarado, quem era gênio incompreendido. Tentava rir da minha própria tragédia e todo tempo, todo tempo mesmo, eu cantava na cabeça a música “Loser” do Beck. Foi a minha amiga Mari Paoli, nos distantes anos 90, quem me mostrou que o refrão era em português (ou em espanhol, que para americano é a mesma coisa). “Sou... um perdedor. I’m a loser, baby. So why don’t you kill me?”.



O Beck gostava mesmo de música brasileira. Os ex-alunos do Bandeirantes que acompanham o Blog podem ver que nosso amigo Alan Dias participa do clipe, tocando sua guitarra no telhado.

Mas voltando ao Jader, que foi a inspiração inicial, a frase dele continua me martelando e espero que continue pra sempre. Tive que trabalhar dez anos em empresas pra entender o que ele quis dizer e talvez a resposta esteja na diferença entre criar e produzir. Eu produzi diversos relatórios, planilhas, cálculos, conferências (o famoso “bate” dos cornos bancários), contabilizações e propus melhorias operacionais. O filtro fino da minha memória, aquele que guarda frases como a do Jader, não deixou passar nada. Não tenho nada pra escrever nesse blog, nenhuma inovação, nenhuma descoberta, nenhuma contribuição. Nada interessante. Nada que me dê tesão de lembrar. O executivo assassino do Costa Gravas diz na terapia de casal que a esposa o obriga a ir: “Eu não sou nada sem o meu trabalho. Nada!”. E eu me pergunto agora o que eu era com o meu trabalho.

Mais irônico ainda é pensar que o inchaço do setor público, que eu tanto critico, entre tantas outras coisas do governo do “Nosso Guia”, no meio da minha ilusão liberal do estado mínimo, me tirou da aflição, da violência de não ter dinheiro pra pagar as próprias contas, da possibilidade de enlouquecer como o engenheiro da indústria de papéis. Não tenho nenhuma dúvida de que o capitalismo liberal é melhor do que o socialismo, especialmente do que o nosso socialismo “bolivariano-chavista”, para produzir mais e melhor. Só não sei como separar produção de criação. Faz tempo que os americanos, que são muito melhores, como diziam os Sobrinhos do Ataíde, fizeram as duas coisas parecerem a mesma coisa. Até criaram (não produziram) o termo “Indústria Cultural”. Mas não adianta, não é a mesma coisa. O tesão não é o mesmo.

2 comentários:

Edison Waetge Jr disse...

Tem hora que frustra mesmo. A maior parte das pessoas cria de verdade muito pouco. Por outro lado, também não são muitas as oportunidades que uma pessoa comum tem para criar. Na maior parte do tempo reciclamos conhecimentos e práticas antigas para fazer as mesmas coisas de um jeito um pouquinho diferentes.
As oportunidades são poucas. Resta aproveitá-las.

Georgeumbrasileiro disse...

Grande Tai. Sempre muita emoção.
E de quebra ainda o Alan tocando violão no telhado, no clipe.
Ábras