Um ano e quatro
meses de ócio depois, baixou hoje uma crise existencial. Não sei como a ciência
define este tipo de crise. Eu entendo como aquele momento em que a gente olha
os carros passando na rua, as árvores, as pessoas andando na Paulista, baixa um
exú socrático e nos perguntamos: o que é o mundo, afinal? Quem sou eu? O que
estou fazendo aqui? Nesta toada entediante vai minha vida: do videogame para o
livro, do livro pro videogame, do videogame pra Copa, da Copa pro site do Banco
Central que não me chama pra tomar posse e eu, para evitar o enlouquecimento
precoce, sem querer me voluntariar para a campanha do Celso Russomano ao
governo, só para encher o saco dos meus amigos de esquerda que me enchem o saco
porque vou votar no Serra, vou escrever alguma coisa sobre estas coisas todas e
rezar para que haja alguma conexão entre elas. Como diria Jerry Seinfeld em um
dos meus episódios favoritos: “Prognosis negative”.
Relendo uma das
apostilas concedidas durante o curso de formação em Brasília, uma compilação de
notícias de jornal envolvendo o Banco Central, achei algo interessantíssimo que
na época me passou batido. Num dos picos da crise financeira internacional de
2008, após a quebra do Lehman Brothers, o governo Lula cogitou seriamente
demitir Henrique Meirelles e substituí-lo por Luiz Gonzaga Belluzzo. A julgar
pela situação do glorioso Palmares, chega a dar arrepios pensar no que teria
acontecido, mas isso é o de menos. O de mais é o motivo: o embate entre os
desenvolvimentistas do Ministério da Fazenda e os neoliberais do Banco Central.
Uma rixa antiga, longe de ser exclusividade do atual governo. Menos ainda do
Brasil. Apesar do meu santo estar em pé de guerra com os santos do Nosso Guia
desde que ele chegou ao poder pela primeira vez (com o meu voto, diga-se de
passagem), não posso deixar de reconhecer que o cara é extremamente
inteligente. Já dizia o Socrátes, safo é quem sabe que não sabe nada. Lula
voltou atrás na última hora e manteve Meirelles no cargo.
Ao invés de vomitar
minha opinião sobre o tema, prefiro seguir na busca de um blog o menos
jornalístico possível. Quero ser anti-cagação de regra (como se isso fosse
possível). Prefiro tentar um exercício parecido com o que fazem os economistas:
filosofar sobre o assunto simplificando o modelo.
Estudo de Caso A
- Cauã e a família neoliberal
Cauã era filho de
Margarida, doutora em antropologia pela USP, e Jan Malbec, francês naturalizado
e naturalista apaixonado pela Mata Atlântica. Aos quinze anos já não suportava
ouvir falar de Marx, de Levi Strauss, da anistia, do LP “Transa” do Caetano.
Comprou um ventilador com cinco velocidades para dispersar a marofa do
apartamento. Pediu aos pais, de joelhos, que o tirassem do Equipe e o deixassem
estudar no Bandeirantes. Margarida chorou de decepção, mas Jan entendeu que o
filho deveria escolher seu caminho. Com vinte e dois anos Cauã estava formado
na GV e efetivado numa multinacional de consultoria. Aos vinte e oito casou-se
com Diana, psicóloga, paixão remanescente dos tempos do Equipe.
O primeiro conflito
do casal foi por conta do apartamento. Sua linda esposa queria morar em
Perdizes, ou na Vila Beatriz, mais chique e mais alternativa do que a Madalena.
Cauã bateu o pé. Comprou um apartamento de setenta metros quadrados e dois
dormitórios na Vila Mascote, fundamentado em cinco planilhas detalhando, entre
outras coisas, o percentual ideal de endividamento de um casal em começo de
carreira e um estudo comparativo do potencial de valorização imobiliária dos
bairros de São Paulo. Antes das bodas de algodão, já tinham seguro de vida,
plano de previdência complementar e um fundo especial para a faculdade dos
futuros filhos.
Os filhos vieram e
foram denominados Carolina e Ricardo. Nada de nomes alternativos de filho de
psicóloga. A gestão do lar passou a ser executada por Adjane, uma moça de vinte
e três anos formada em Turismo na UNIBAN. Diana disse nunca ter visto na vida
uma empregada doméstica com curso superior. Cauã deu de ombros e a apelidou
carinhosamente de “État”. Explicou que os dois deveriam estar focados em suas
atividades profissionais, com o mínimo possível de intervenção ou mesmo
interrupção. Para isso precisavam de uma pessoa qualificada para executar
poucas atividades, todas essenciais, de maneira eficientíssima. Adjane tinha um
excelente salário, mas o benefício tinha como condição a freqüência e o
desempenho exemplar em cursos técnicos do SENAC como “Culinária refinada e
saudável”. Não satisfeito, Cauã contratou mais um auxiliar. Seu Alberto,
contador e economista, passou a ser o responsável pelo planejamento financeiro
e tributário do lar. Logo ficou conhecido como “nosso pequeno bundesbank”.
Diana passou a ser a primeira psicóloga de São Paulo a emitir nota fiscal e
recolher imposto de renda.
Best Case
Scenario (Este título tem que ser em inglês - afinal, a família é
neoliberal)
Cauã e Diana se
aposentam felizes, ambos referências em suas áreas de atuação. Compram um bela
casa em Miami, onde passam a maior parte do tempo. Ricardo segue o rumo do pai
e também se forma na GV. Carolina não se adapta direito ao colégio, sonha ser
bailarina e, graças ao fundo de investimento dos pais, realiza seu sonho e
muda-se para Praga. Adjane termina seu mestrado em Turismo na PUC e monta uma
pousada na Bahia.
Worst Case
Scenario (Idem)
Diana entra em crise
existencial devido à absoluta ausência de problemas domésticos. Foge com um
paciente de vinte e cinco anos, bipolar, viciado em jogo e sexo. Seu Adalberto,
advogado, primo do seu Alberto, manda bem na vara da família e Diana leva mais
da metade do patrimônio. Cauã passa a achar que não curtiu a vida o suficiente,
compra uma BMW conversível para passear com Adjane e Carina, melhores amigas de
sua filha Carolina. Esta, por sua vez, se revolta com pai, termina o curso de
História na PUC e se candidata a vereadora pelo PSOL. Ricardo muda de nome e
endereço: mora no México, integra uma banda de música havaiana e é conhecido
como “Humaikê”.
Estudo de Caso B
– Luis Felipe Vasconcelos e a família desenvolvimentista
Luiz Felipe era
filho de Ana Beatriz Coelho Neves, membro ilustre de uma família de fazendeiros
de Ribeirão Preto, e Luis Carlos Vasconcelos, industrial. Aos quinze anos já
não suportava mais ouvir falar da falta de uma reforma tributária decente nesse
país, de bolsas Louis Vuitton e do LP “Ida e Volta” do príncipe Ronnie Von.
Aturou as aulas e os colegas do Santa Cruz até o vestibular. Optou pelo curso
de economia da UNICAMP, saiu de casa e procurava visitar os pais somente nas
datas imprescindíveis. Com os colegas de república fundou o grupo INICEPAL
(Iniciantes da CEPAL. O nome original, CEPAL Júnior, foi vetado e considerado
coisa de imperialista). Apaixonou-se perdidamente, depois de uma balada farta
de maconha, cerveja barata e músicas do Gil, por Tatiane, morena alta e
charmosa, garçonete do “Gordão” de Campinas.
Logo se casaram.
Adquiriram boa renda mensal quando Luiz Felipe passou no concurso público do
IPEA e Tatiane tornou-se técnica da Justiça do Trabalho de Campinas, graças às
aulas caseiras do marido. Mal recebera o segundo holerite, Luiz Felipe decidiu
pela compra de uma ampla casa de quatro dormitórios em Sousas, financiada pela
Caixa em quarenta e oito anos. Tudo pela qualidade de vida dos três filhos que
logo vieram: Lua, Tupã e Aquiles. Para cuidar da casa, trouxe a família de
Alcebíades, um dos filhos do velho capataz da fazenda de seu pai.
As crianças todas,
filhos de Luiz Felipe e Alcebíades, foram educadas na mesma escola particular,
de orientação artística, livre e democrática. À tarde cada criança estudava o
instrumento musical de sua escolha. Em seguida, um trabalho coletivo de
expressão corporal solta e teatro, sob orientação de um filósofo finlandês
radicado em Campinas. A esposa de Alcebíades tinha completa autonomia da gestão
da casa. Cuidava de tudo. Não era lá muito eficiente, mas sempre sorria
carinhosa e se destacava no tempero caseiro. Vira e mexe comprava demais no
supermercado e as coisas estragavam. Alcebíades supostamente controlava as
contas numa mesinha e num arquivo daqueles de ferro cinza, tudo no quartinho
debaixo da escada. Tatiane, na verdade, nunca entendeu muito bem o que era
aquela coisa toda, mas gostava de papear com as amigas do Tribunal do Trabalho
e de fazer compras no Shopping Dom Pedro todo fim de semana. Uma vez por ano a
família decidia, por sufrágio em dois turnos, a viagem internacional que fariam
nas férias.
Melhor Cenário
Luiz Felipe
descobre, absolutamente surpreso, que está completamente falido aos quarenta e
oito anos. O contador contratado a contragosto para substituir Alcebíades
demonstra na ponta do lápis que suas dívidas são equivalentes ao salário somado
dos cônjuges, trazido a valor presente, nos próximos quinze anos. Mas neste
mesmo dia, numa reunião familiar onde todos debatem os problemas de forma
informal e em círculo, ponderam que para tudo se dá jeito. Lua já é professora
de Antropologia na universidade, Tupã é violista da OSESP e até o pequeno
Aquiles está bem preparado para o concurso iminente da Petrobrás. Os filhos de
Alcebíades, também todos encaminhados, se prontificam para o que der e vier.
Tatiane sorri com lágrimas nos olhos e propõe uma comemoração em família no
“Rei do Bacalhau”, desde que Lua possa pagar a conta no cartão de crédito, com
vencimento no dia 30.
Pior Cenário
Luiz Felipe
descobre, absolutamente surpreso, que está completamente falido aos quarenta e
oito anos. O contador contratado a contragosto para substituir Alcebíades
demonstra na ponta do lápis que suas dívidas são equivalentes ao salário somado
dos cônjuges, trazido a valor presente, nos próximos quinze anos. Lua se
revolta com a situação, afinal não conseguia entender como ninguém se
interessava em patrocinar sua exposição de fotografia das tribos de Rondônia.
Contava com o dinheiro do pai. Como assim não vai rolar? Tupã ainda não tinha
se decidido entre a gaita em lá menor e o oboé quando recebeu a notícia. O
pobre Aquiles usava o dinheiro do cursinho de concurso público para comprar
fumo com a galera de Vinhedo. Os três filhos crucificam os pais sem dó: a falta
de grana veio do financiamento dos filhos do caseiro. Estavam todos morando em
São Paulo, trabalhando em bancos e empresas fabricantes de soja transgênica.
Tatiane fica com medo de não ter mais dinheiro para freqüentar o Shopping e
foge com o dono da lanchonete “Gordão”. Alcebíades pede demissão e vai
trabalhar alí com o pessoal do condomínio. Luiz Felipe muda-se para uma
quitinete no centro de Campinas onde, no lugar da televisão, guarda com carinho
os escritos completos de Marx e Keynes.