8.8.10

O "amor" e o Doce de Côco

Ah, o “amor”! Quando saí de casa para morar sozinho, vivi várias histórias. O morar sozinho é irônico, havia uma pobreza e uma divisão com várias levas de amigos. O amor também não era bem assim. Morar sozinho é irônico porque quem bancava ainda era o velho Lessa. Este pai querido que sempre me assombra nas crônicas deste blog. Mas hoje ele tem direito, é dia dos pais e eu senti saudade daquele que insistia na tese de que as datas comemorativas são uma conspiração das Casas Bahia. Se vivo estivesse, estaria em seu quarto, lendo o Estadão, criticando o governo, a carga tributária, o Edir Macedo e fingindo não saber que dia é hoje. Uma assombração justa. Esta história de morar sozinho começou na rua Capote Valente, em Pinheiros, o primeiro apartamento que o velho comprou ainda jovem, financiado pela Caixa em não sei quantos anos. Ali começaram as minhas estripulias estudantis. Ali tomou corpo meu sonho de sessão da tarde. A Capote tem várias histórias interessantes, mas vão ficar para outro dia. O tema de hoje é o “amor”, propositalmente entre aspas.

Um dos amigos que compartilharam comigo aquele espaço auspicioso foi o Rodrigo Barros, popularmente conhecido como Portú. Uma figura ímpar, inteligência inata, nada intelectual. Um cara com quem se conversa profundamente sem a necessidade de livros ou referências. O Portú, assim como muitos outros amigos, me chamava de “Tai”, abreviação de “Taiwan”, corruptela dantesca de meu maravilhoso nome Tupi-Guarani.

Uma das inúmeras piadas internas por nós desenvolvidas nos anos de convivência foi a teoria da crença no "amor". Vira e mexe o Portú me perguntava: “E aí, Tai, o pessoal continua a acreditar no ‘amor’?”. Era uma pergunta retórica, humorística, cotidiana, mas vinha grávida de um conteúdo filosófico e perturbador. Como se o “amor” fosse impossível, um coelhinho da Páscoa. No fundo ele perguntava se valia a pena colocar em risco tudo aquilo que nós estávamos tentando construir, trabalhando dez horas por dia e chegando em casa exaustos, sem contar as tentativas de resolver à noite as pendengas da família, por um “amor”. A palavra perdeu a poesia, perdeu a literatura. O “amor” virou um gráfico de risco x retorno. O amor para nós estava entre aspas.

O Portú se foi, seguiu sua vida, eu fiquei na Capote por mais um tempo e lá vivi o meu grande “amor”. Uma história extraordinária, renderia quatrocentas páginas se eu fosse o Flaubert. Eu poderia descrever o deslizar lânguido das camisolas rosadas, o perfume inefável dos travesseiros amassados, só que eu nasci em São Paulo e o barulho dos vizinhos e o meu vício em videogame acabaram impactando o “amor”. Isso entre tantas outras coisas que não são para se escrever em blogs, coisas que são das nossas histórias e das nossas neuroses. Mas o fim da relação me fez voltar à pergunta capciosa do Portú muitas e muitas vezes.

Fica fácil não acreditar mais no “amor” após alguns meses de terapia. Lá destrinchamos todos os motivos, todas as incompatibilidades intelectuais, todos os egoísmos, todas as incompreensões. Obtemos as justificativas. Me lembro do tempo em que morei em Jaguariúna. Sempre que estava voltando pra lá, filosofando na estrada,  ouvia o programa do Doutor Gikovate na CBN. As questões sobre relacionamento faziam o maior sentido. Vivemos num mundo individualista e as aspirações egoístas tem que ter seu espaço, sua voz, essa foi a opção que eu fiz e eu tenho todos os argumentos do mundo para ficar sozinho e feliz. Tudo isso é muito legal. Só esqueceram de avisar os poetas e os cantores. A gente às vezes chega em casa meio bebum e escuta uma música assim...




Doce de Côco

Venho implorar
Pra você repensar em nós dois
Não demolir
O que ainda restou pra depois
Sabes que a língua do povo
É contumaz, traiçoeira
Quer incendiar, desordeira
Atear fogo ao fogo

Tu, sabes bem
Quantas portas tem meu coração
E os punhais cravados pela ingratidão
Sabes, também, como é passageira essa desavença
Não destrates o amor

Se o problema é pedir, implorar
Vem aqui, fica aqui
Pisa aqui neste meu coração
Que é só teu, todinho teu
E o escorraça e faz dele de gato
E sapato
E o inferniza
E o ameaça pisando, ofendendo
O desconsiderando,
O descomposturando, com todo vigor
Mas se tal não bastar
O remédio é tocar
Este barco do jeito que está
Sem duas vezes se cogitar
Doce de côco,
meu bom-bocado
meu mal pedaço
De fato, és um esparadrapo
Que não desgrudou de mim

(Música de Jacob do Bandolim / Letra de Hermínio Bello de Carvalho)


A interpretação é da Giana, uma amiga muito querida com quem eu estive essa semana e me inspirou essa postagem.