25.9.11

As cores de Machado

Esta semana me irritei com a notícia: a Caixa Econômica Federal retirou do ar uma campanha publicitária onde o ator que representa Machado de Assis é branco.



    Mas, antes de entrar no mérito da discussão, fiquei pensando sobre o porquê da minha birra com qualquer tipo de "esquerdismo" estar cada dia pior. Quando me atacam estas ziquiziras, logo me vêm à mente memórias da campanha de Lula em 1989, da campanha para vereador do meu pai e suas idéias, sua história contra a ditadura dentro da igreja presbiteriana, da minha paixão adolescente e sincera pelas "causas sociais". Dizem alguns que todo cara inteligente é comunista na adolescência e ultra liberal quando cresce. Assim de cabeça me lembro de Pérsio Arida (Obs: ver seu depoimento em recente edição da revista Piauí - imperdível), Maílson da Nóbrega e  - o clássico - Paulo Francis. Eu deveria estar orgulhoso, talvez, não preocupado. Fato é que estou, e os trinta anos pela frente no Banco Central certamente só me farão piorar.

    Um certo fato me assombra: o famigerado elitismo dos Themudo Lessa. A consciência plena da existência deste mal sutil na família do meu pai surgiu por acaso, durante uma feijoada, batendo papo com meu tio Renato, irmão mais velho do papai. Foi uma epifania. Após mais uma de nossas longas e inúteis discussões sobre a superioridade de Corinthians ou São Paulo, perguntei ao meu tio como ele tinha virado sãopaulino. Para minha surpresa, veio uma história ironicamente fantástica. Acontece que na rua Cardeal Arcoverde, lá pelos anos quarenta ou cinquenta, circulava um lixeiro negro em sua carroça. O pequeno Renato Themudo Lessa veio a ficar amigo do filho deste senhor e se divertia à beça circulando por Pinheiros na companhia dos dois. E este lixeiro negro era são paulino doente e foi o responsável pela mais terrível mácula de nossa família até os dias de hoje. Brincadeiras à parte, fiquei fascinado pela história e perguntei, não sei por que: "Mas e aí, que fim levaram os dois?". E o tio Renato respondeu: "Não faço a menor idéia. A tia Hermínia, com aquele elitismo típico dos Themudo Lessa, um dia me pegou circulando com o lixeiro e meu deu uma sova daquelas!".  Minha imagem de infância da tia Hermínia é a de uma doce velhinha, professora aposentada, simpaticíssima e muito culta (uma imagem provavelmente justa, diga-se de passagem). Contudo, não tenho nenhuma dificuldade em imaginá-la reprimindo um sobrinho por circular lépido e fagueiro com lixeiros negros pela Cardeal Arcoverde.

    Nos raros momento em que me reúno com esta família, sinto uma alegria enorme, sincera. Admiro todos, pelas pessoas que são, existe um amor sincero entre nós, uma coisa rara numa família tão grande. No entanto, é muito difícil negar a força do nosso elitismo. Não necessariamente pela riqueza financeira, mas por serem todos saudáveis, bem-sucedidos, competentes profissionais, morarem em bairros nobres, conversarem sobre qualquer assunto e coisas do tipo. Um membro militante do PSTU classificaria minha família como um bando de neoliberais. Nenhum de nós se casou com um negro ou uma negra, assumiu-se homosexual ou sofreu qualquer tipo de discriminação (Ainda. Espero sinceramente que qualquer dos eventos um dia aconteça). Talvez assim sejam as famílias de classe média alta de São Paulo. E, com certeza, essa experiência de alguma maneira me "auto-descredencia" para exprimir argumentos claros como água na minha cabeça.  

    Voltando, finalmente, à campanha publicitária da Caixa Econômica, confesso estar sem paciência para escrever de novo minhas opiniões sobre como a questão racial é tratada no Brasil. Já falei sobre o assunto neste mesmo blog (http://travessiadoiata.blogspot.com/2010/04/o-racismo-e-as-palavras-magicas.html). Considerando que isto é um blog e não uma tese de mestrado, prefiro contar o que me passou pela cabeça desde o evento do comercial, muito mais engraçado e interessante. A primeira coisa foi um episódio, aliás o primeiro da primeira temporada, do seriado americano "Boston Legal". Uma mulher negra aparece querendo contratar o escritório de advocacia para processar os produtores de uma peça de teatro que não escolheram sua filha de oito anos para o papel principal. Alegava que a menina era a melhor candidata e só não fora escolhida porque o papel, no roteiro original, era de uma menina loira de olhos azuis. No final, o juiz dá ganho de causa aos protagonistas. Contudo, e isto faz da série muito interessante, não fica claro ao longo do episódio se o juiz deciciu pelo fato da menina ser negra ou pelo fato dela ser a melhor.

    E a melhor parte (o clímax é sempre interessante quando, ainda que na tentativa,  é levado à música ou ao texto) deixei pro final. Tenho a sorte de sentar numa baia rodeada de pessoas interessantes no Banco Central. Uma delas, João Rodrigues, ouviu minhas lamúrias sobre o comercial da Caixa e começamos a conversar sobre o assunto. Após uma interessantíssima discussão, sem discordar ou concordar, ele me encaminhou este texto do crítico literário americano Harold Bloom sobre Machado de Assis.

    "Machado de Assis is a kind of a miracle, another demonstration of the autonomy of literary genius in regard to time and place, politics and religion, and all those other contextualizations that falsely are believed to overdetermine human gifts. I had read and fallen in love with his work , 'The Posthumous Memoirs of Brás Cubas' in particular, before I learned thar Machado was a mulatto, and the grandson of slaves, and this in a Brazil where slavery was not abolished until 1888, when he was almost fifty. Reading Alejo Carpentier, I first wrongly assumed that he was what we call 'black'. Reading Machado de Assis, I first wrongly assumed that he was what we call 'white' (...). Carpentier, in 'The Kingdom of This World', writes from what we now regard as a black perspective. Machado, in 'Posthumous Memoirs', ironically adopts a rather decadent Portuguese-Brazilian white perspective."  

    Com severa falta de integridade intelectual e irresponsabilidade, típica da esquerda, o site do PSTU (http://pstu.org.br/opressao_materia.asp?id=13380&ida=18) comparou a campanha publicitária da Caixa às bizarras teorias do final do século XIX e início do XX que atribuíam à raça negra um fator de depreciação à evolução da humanidade. Mas foi curioso, ao ler esse site, a menção de que o comercial da Caixa estava "radicalizando a conhecida negação que Machado fazia de sua própria negritude".

Ao falar sobre a influência do escritor irlandês Laurence Stern sobre Machado, Bloom ressalta:

" (...) This is not to deny originality and criative zest to the Brazilian master, but only to remark that Stern's spirit freed Machado from any merely nationalistic demands that his Brazil might have hoped to impose upon him".

    Não conheço a biografia de Machado de Assis suficiente bem para afirmar se ele negava ou não sua "negritude". Aliás, "negritude" é uma palavra que me remete ao fato de alguns negros tentarem imitar tudo o que os brancos fazem de pior: editar revistas idiotas de moda nas bancas, participar de "Reality Shows", ter bandas toscas de pagode, um protagonista na novela das oito  ou - o supra sumo - candidatar-se a senador pelo PT. Suponho que Machado tivesse preocupações um pouco maiores. Talvez ele fizesse parte de uma espécie de elite negra, a mesma que comprava escravos logo após conquistar a alforria, fato comum e convenientemente esquecido da história do Brasil. Ou, o mais provável: ele foi um mestiço, como somos todos nós brasileiros desde antes de 1500, cuja obra fala de questões humanas e universais e faz sentido em qualquer tempo ou lugar. Se ele estivesse no céu e assistisse um comercial da Caixa onde um anão japonês albino com cabelo tingido de loiro o interpretasse, viraria para São Pedro e daria uma boa risada.