21.12.11

81 Casamentos


Há um preço para o conforto, a estabilidade e o bom salário de um juiz da vara da família. O bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, fez-se responsável por esta salutar contrapartida dos magistrados aos cofres públicos estaduais. Mas tem detalhe: uns sempre pagam pelos outros. Sobrou para o dileto Alberto Kirchoff, morador da distante Barra da Tijuca, pai de três filhos e dois casamentos no currículo. Lembrou-se do compromisso dominical enquanto tomava um licor digestivo na varanda e observava o caçula circular entre os brinquedos. Logo pensou que graças a deus já acabara o campeonato brasileiro. Deus, aliás, deu esta colher de chá, mas mandou a conta. Santa Cruz exigia sua convocação no time titular. Telefonou para o primo paulista, filho de um falecido pastor presbiteriano que adorava celebrar matrimônios. Tem algum material? Tinha. Estava parcialmente resolvido o problema, realizar uma cerimônia pública onde oitenta e um casais deixariam a praça comprometidos.

No domingo, um coquetel de ansiedade com pitadas de medo da hipocrisia. O juiz entrou no carro e jogou no banco do passageiro as anotações inconvictas. "Senhor, este é um momento soleníssimo na vida destes teus filhos que hoje constituem uma família". O caminho da linha amarela, depois vermelha, cheio de janelas, dentro de cada uma um contubérnio, ironizou-se. A partir daquele dia oitenta e uma novas gavetinhas estariam diferentes, abençoadas, desgraçadas, chanceladas. "Senhor, Tu tens sido nosso refúgio de geração em geração". Assim passou pela estrada de ferro Central do Brasil, andou mais um bocado e avistou a multidão que o aguardava ansiosa na praça da paróquia.

Ali do púlpito improvisado, já suando em bicas, o juiz Alberto surpreendeu-se com a organização dos futuros cônjuges, respeitando sem tumulto o espaço alheio em clima de confraternização. Os convidados se comportavam como se Vasco e Flamengo fossem um time só, Dinamite tocasse de calcanhar para Zico, o campo só tivesse uma trave e o jogo já estivesse ganho. Só admirando de longe. As meninas eram daminhas-de-honra à distância, sem perder a pose. Os meninos, inconscientemente solidários ao juiz, também agradeciam pelo fim do campeonato brasileiro. Após certa acomodação, Santa Cruz viveu o Carnaval às avessas, um silêncio esquisito, todos os ouvidos voltados ao meritíssimo.

Convicto ou não, a hora estava lá, e começou. Houve um ponto, no auge do calor e das lembranças do primeiro casamento, em que resolveu apelar para a benção inconteste: "Coroa dos velhos são os filhos dos filhos e a glória dos filhos são seus pais". Justificou a atitude pela experiência rotineira e pessoal: casamento bagunçado era todo dia, filho indesejado não. Ao dizer o trecho final - "Perdoem sempre um ao outro, respeitem-se mutuamente e que, acima de tudo, esteja o amor, vínculo da perfeição" - percebeu a diferença entre citar o dito cujo para duas e para cento e sessenta e duas pessoas. Lágrimas, abraços e cumprimentos retomaram a rotina carnavalesca do subúrbio carioca e ninguém era de ninguém. Exceto para o magistrado Alberto, esse era exclusivo da fila caótica que se formava para cumprimentá-lo pela cerimônia.

Assim foi o domingo deste preclaro funcionário público carioca. Um dia para mudar a vida dos outros, pensar a própria ou talvez para nada. A corrida de volta fez um pouco mais de sentido, as pequenas luzes das linhas não eram as mesmas, a música aleatória do rádio causou alguma emoção, sua profissão, um pouco mais feliz, saiu da rotina e tirou férias. Em casa, deparou-se com os mesmos filhos, as mesmas alegrias e os mesmos problemas. Mas ainda teve a vontade de ir ao computador, escrever ao primo paulista e colocar no campo do assunto: “Sucesso”.

2 comentários:

Fernando Lessa disse...

Veja o poder de Deus, para nos dare sentido a uma vida sem sentido!

Saudades do seu pai que me ensinou estas passagens e o pensamento cristão.

Fernando Lessa disse...

Veja o poder de Deus para dar sentido à vida sem sentido.

Saudades do seu pai que me ensinou estas passagens e o pensamento cristão.