24.9.12

Brasília – Terceiras impressões



No último dia 23 de agosto fez dois anos que estou em Brasília. Naquele fim de semana curti a seca do cerrado como nunca. Curti a felicidade de acordar de manhã, fazer um café bem preto, abrir a janela e ver as árvores desfolhadas, ao lado de outras meio cobertas, no gramado amarelando da quadra 403 sul. Fiquei curtindo a natureza da janela, fumando o primeiro cigarro do dia e amenizando a neurose nas primeiras internetes. Uma pena se tratar de uma felicidade como toda felicidade (duram algum tempo determinado). Mudar de cidade é uma decisão profunda. Pelo menos para mim, muito antes de avaliar o acréscimo salarial, a qualidade do metrô, a distância do trabalho ou o preço do IPVA, mudar de cidade implica estar disposto a conhecer pessoas. 
  
 Quando cheguei aqui esse negócio de pessoas estava em baixa na minha bolsa. Fui criado por um pai que contava a seguinte história: no funeral de Dale Carnegie, autor do best seller “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, apareceram dez. Nunca acreditei muito nisso, para ser sincero. Mas como o mesmo pai citava, em italiano, “Si non è vero, è bene trovato” (Se não é verdade, é muito bem sacado – como diria o Silvio Santos). O irmão dele, meu tio Raul, tem entre suas frases favoritas a seguinte: “Quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais”. Pois é. De lá pra cá meu espírito não mudou muito. Me pego com frequência mais interessado nos documentários do Animal Planet do Netflix do que nos filmes-pérola dos anos noventa. 

Fiquei especialmente fascinado por um vídeo dos macacos japoneses nas montanhas nevadas. (Preferiria mudar de assunto para que nenhum leitor do blog cogite minha internação numa clínica psiquiátrica, mas vamos lá). Uma pena o motivo não ser a admiração pelos animais, mas a prosaica constatação de que quanto mais próximo dos humanos, mais cruéis e políticos ficam também os bichos. Estes distintos macaquinhos nipônicos tem o hábito de, no auge do inverno japonês, abrigar-se nas deliciosas piscinas naturais de água quente que se formam perto dos vulcões. O detalhe é que só os membros do clube tem acesso ao resort. Os excluídos ficam olhando de longe, muitos morrem de frio.  

O fato é o seguinte. Todo mundo adora aquele discurso: “você tem que estar aberto para conhecer pessoas”, “você tem que expandir seus horizontes”, e etecetera e tal. Eu já acho um desperdício perder as pessoas com quem você passou vinte anos, tem todas as piadas internas prontas. Desenvolver uma piada interna é um processo trabalhoso. Chegar ao ponto de ter um amigo em cuja casa se pode entrar, abrir a geladeira da esposa dele, pegar uma cerveja, aboletar-se no sofá e não ter a obrigação de puxar assunto é um processo hercúleo! Custa sim! Custa pra cacete!  Recuso-me a ser taxado de preguiçoso. (Obs: minha mãe me critica quando uso palavrões no blog, mas depois de ver que Machado de Assis usou o cacete no Quincas Borba - na verdade “cacête” - perdi o remorso). 

O mesmo Quincas Borba, aliás, colocou ainda mais lenha na minha fogueira da insanidade (Nada mais justo, haja vista ser o personagem principal o Rubião). Diz o Massaud Moisés em sua introdução ao livro: “Consequentemente, a obra toda é uma grande sátira da vida, de seus ingredientes e de suas verdades. O matiz irônico reside no ser Quincas Borba uma peça única de chacota à Humanidade desenfreadamente presa a certos dogmas de superfície e incapaz de olhar mais a fundo no íntimo dos problemas. A ironia atinge a todos, e só se salvam (caso o consigam), os loucos, os mansos e os animais irracionais”. De fato, o único personagem sensível e confiável da história é o Quincas Borba. O cachorro, obviamente, não o filósofo (se é que não são a mesma pessoa - mas isso deliciosamente nunca saberemos, assim como o adultério de Capitu). Li o livro errado na hora errada. Ou não, como diriam Gil e Caetano balançando em suas redes. 

Acredito já ter falado sobre os estranhamentos do começo e sobre as vantagens e desvantagens do confronto São Paulo X Brasília nas postagens anteriores. Então vou adiante. Alguns detalhes vão te fazendo sentir mais brasiliense e menos paulistano. Os primeiros são mais sutis. Perceber que já se vai à Taguatinga, ao Guará ou às Águas Claras sem GPS. Depois já me pego falando de Goiânia, Pirenópolis ou da Chapada como se fossem um Guarujá ou uma Ubatuba. Mas a mais fatal, especialmente para um liberal convicto como eu, foi virar um paredista! Grevista! Piqueteiro! É verdade. Fiz greve. Fiz com convicção. Fiz com a certeza dos idealistas, aqueles que morrerão sem fazer a menor diferença no destino do mundo. 

A greve de um dia do Banco Central foi o seguinte (tentarei contar a história sem que o leitor durma, ou desista do blog e clique no link de uma promoção do GROUPON): estamos sem reposição de inflação há quatro anos. Isso representa uma perda no poder de compra do salário de aproximadamente 23%. Dilma nos ofereceu (a nós e a todos os servidores federais em greve) 15%, parcelado em três anos. O SINAL, um dos sindicatos que representa o Banco Central, agiu de maneira muito correta e íntegra, em minha opinião, promovendo uma série de assembleias para que os servidores expusessem sua opinião sobre o que fazer. Ao final da votação, os que se dispuseram a comparecer à assembleia decidiram não aceitar a proposta do governo, ficar sem aumento e jogar a negociação para o ano que vem. Eu votei pela aceitação da proposta. Portanto, fui contrariado e acatei a vontade da maioria.  

Tudo muito bem, até que vem o ser humano. Fosse o Banco Central uma autarquia de macacos, era bem capaz da negociação ser mais simples, e da inflação não estar tão longe do centro da meta. Ao perceber que mais de 80% dos servidores federais aceitaram os 15% e que ficaremos sem ver a cor do dinheiro por um bom tempo, funcionários do Banco Central passaram um abaixo-assinado para tentar garantir os famigerados 15%. “Que deselegante!”, diria Sandra Anemberg. Pra que sindicato? Pra que assembleia democrática? Pra que discutir a corrupção dos governos do PT? A líder do movimento até calculou a “perca” nos centavos, seis mil novecentos e trinta e alguma coisa. Pô, bicho! Dá duas viagens pra Miami e um Ipad!  

Termino essa postagem com uma confissão sincera. Eu, quando penso em política, especialmente depois da sexta latinha de Heineken, também tenho meus arroubos de Rubião. Sonho em fundar o Partido Liberal Brasileiro, uma agremiação defensora do Estado laico, do casamento gay, do direito ao aborto, da redução de impostos, do livre mercado e do Estado mínimo. Um grupo formado por honestos engenheiros, diplomatas, bacharéis, na melhor forma de Muçuns e Tiões Macalés (Não entendeu? Então clique urgente: http://www.youtube.com/watch?v=2NhvnXsCkJ8). Me vejo discursando, com lágrimas nos olhos, para a população esperançosa espalhada na Esplanada dos Ministérios. Mas eis que a sétima Heineken já começa a dar azia e vem a hora de dormir. Se não consigo convencer os engenheiros, bacharéis e diplomatas do Banco Central a votar uma proposta de reajuste salarial com um mínimo de bom senso, quem sou eu para convencer a Dona Filomena, costureira da Vila Ré, a não votar no Russomano? Queria mesmo é ser o cachorro dela, comer minha ração e ficar sossegado no quintal.

8.6.12

Rush e o Facebook



Minha obsessão por Rush começou cedo. Acredito já ter contado, aqui mesmo neste blog, a história das minhas tardes de estudo na casa da Giana. Estávamos no primeiro ou segundo colegial, portanto 1991 ou 1992.  Saíamos do Bandeirantes, na rua Estela, depois do final das aulas da manhã, lá pelo meio-dia e meia. Caminhávamos por toda a Cubatão, atravessávamos a Bernardino e depois vinha mais um bom pedaço da 13 de Maio, onde ficava o prédio dela. Para cada meia hora de estudo, umas duas e meia de conversa sobre a vida. Era um apartamento amplo e muito gostoso, com um piano preto na sala e uma cozinha enorme. Havia uma mesa no meio onde no final da tarde sempre pintava um pãozinho francês fresquinho e uma mortadela. Uma delícia aquelas tardes, e aquele tempo também.
Numa destas muitas duas horas, a Giana me mostrou um disco do Rush, ainda em vinil. Eram do Rodrigo, irmão mais velho dela. Ela batia os dedinhos na cama pra mostrar como os andamentos de cada parte de música eram completamente diferentes, a dinâmica e o clima se alternavam e essas coisas. Enquanto toda a galera do colégio ouvia Metallica, Gun`s, AC/DC e Iron Maiden (nada contra. adoro e escuto até hoje), a Giana me fez ouvir Jane`s Addiction, Chick Corea, Milton Nascimento instrumental e Rush. Quando lembrei esta história recentemente, ela riu e esnobou de brincadeira dizendo que as batidas das músicas dela são muito mais difíceis. Eu acredito. Mas pouco importa.
Essas memórias vieram a tona quando assisti ao filme “Beyond the Lighted Stage”, um documentário sobre a história do Rush. Finalmente entendi com clareza: as impressões do mundo sobre a banda eram as mesmas do meu mundinho de pátio de Bandeirantes. Rush sempre foi como filme do Woody Allen ou Corinthians, ou a pessoa venera ou odeia com todas as forças. Gostar de Rush colocava a pessoa numa categoria diferenciada dentro do colégio, não sei se para o bem ou para o mal. No Bandeirantes a coisa era confusa porque o colégio era predominantemente composto por nerds. O filme mostra claramente que no “mainstream” dos Estados Unidos e do Canadá a divisão era mais clara. Quem gostava de Rush era nerd, quem gostava de KISS era do time de futebol americano, comia todas as mulheres e usava jaquetas vermelhas. Uma das cenas mais engraçadas do filme é o depoimento de Gine Simmons sobre uma turnê onde o Rush abria para o Kiss. Depois do show, o KISS ficava bem louco e trepava com o hotel inteiro enquanto o Rush ficava no quarto lendo livros de literatura.   


Alguns discos da banda, de fato, não são lá muito fáceis de digerir. O filme mostra a ascensão da banda depois dos dois primeiros discos e a brochada geral, do público e da gravadora, com o “Caress of Steel”. Acessando meu HD da juventude, só lembro do George carregando esse CD com convicção nos antigos porta-cds de carro. O único que o ouvia sozinho no carro e não carregava só pra mostrar que gostava “até do Rush Lado B”.  Hoje eu escuto esse álbum e acho muito bom. Aliás, estou escutando enquanto escrevo esse texto. Mas não sei se teria essa opinião tão convicta em 1994.
O mais legal foi ver a banda enfrentar o dilema: fazer um próximo disco mais comercial ou correr o sério risco de acabar a carreira e qualquer possibilidade de dinheiro, sucesso e similares. Eles sacaram o “2112”, um disco com um Lado A de mais de vinte minutos contando uma história de ficção futurista numa sociedade totalitária.  Impossível pensar numa coisa mais nerd e menos comercial. Tudo bem que eles deram uma aliviada com a “A Passage to Bangkok” no lado B, uma faixa de três minutos, aceitável para FMs, basicamente uma ode à molecada fumadora de maconha. Mas, ainda assim, tinha que ter colhão.
Minha intenção com essa postagem não é contar o filme inteiro. Mas muitas coisas mexeram com memórias muito importantes, ainda que pareçam bestas. Uma delas era a  lenda urbana sobre o baterista, Neil Peart. Aos leitores mais jovens esclareço: lenda urbana era uma coisa que existia antes da invenção da internet e do Google. Eram boatos que ganhavam proporções estratosféricas e, na época, não havia muitos meios para contradizê-los. Hoje nenhum pai pode, por exemplo, assustar seus filhos com a história do Homem do Saco. O moleque vai pegar o Ipad, digitar “homem do saco” no google e sacar que ele não existe... É mais ou menos por aí.
Enfim. No meu tempo de colégio começou a circular uma lenda urbana de que o Rush estava parado porque o Neil Peart era gay e estava com AIDS. Eu até hoje não sei direito se esse boato era de fato uma lenda urbana ou se foi apenas uma lenda bandeirantina espalhada pelo Sr. Caio Macedo Carvalhal, emérito odiador da banda em nosso círculo de amigos. Peço encarecidamente aos leitores que me ajudem a esclarecer esse ponto via comentários.
A versão oficial, contada no filme, é a seguinte: Neil Peart perdeu a filha num acidente. Alguns meses depois a esposa dele também morreu, não fica claro o porquê. A banda decide parar por período indeterminado e Neil sai viajando pelo mundo sem contar pra ninguém onde estava. Aí vem a parte mais emocionante, pelo menos para mim. Parte da reconstrução da banda, e do próprio Neil, foi viajar para lugares onde eles nunca haviam estado, entre eles o Brasil. Ele conta que não tinha noção da popularidade que tinham aqui. O show em São Paulo foi o maior público da banda em quase quarenta anos, sessenta mil pessoas. Eu sempre desconfio deste tipo de “marketing emocional”. Faz parte do ter 36 anos. Mas basta assistir o DVD “Rush in Rio” pra perceber que não é balela. A reação do público no começo do show, aos primeiros acordes de “Tom Sawyer”, arrepia até os pentelhos. Além disso, nunca antes na história do rock, como diria nosso ratão criminoso eleitoral Luiz Ignácio, eu vi um show onde a massa num estádio canta uma música instrumental do começo ao fim, como fizeram com “YYZ”.
Aqui, após oito parágrafos, chega a hora de explicar porque este texto se chama “Rush e o Facebook”. Pois bem. Depois do filme me proporcionar tantas catarses e epifanias, achei que a montanha russa emocional tinha parado. Mas eis que, junto com os letreiros, vinha um pequeno epílogo, um jantar dos três camaradas do Rush num restaurante qualquer. Eles começam a comer, beber uns vinhos a aos poucos o papo vai se soltando. Um festival de piadas internas que, obviamente, não tem a menor graça. Lá pelas tantas o Geddy Lee (cantor e baixista da banda) solta a seguinte pérola filosófica (em tradução livre minha): “Nós estamos arruinando o filme desses caras. Todo mundo vai ver quão enfadonhos nós somos”. Na verdade, no inglês fica mais evidente: ”Everybody will realize how BORING we are”.  


Não acredita? Então veja lá.


Se eu fosse um investidor milionário, não teria comprado as ações do Facebook. Não pela tradicional desconfiança sobre as empresas de internet, mas por um fato muito mais simples e essencial. Eu não acredito no futuro do Facebook porque ele escancara, cruelmente, o quanto as pessoas não são interessantes. Ironicamente, essa verdade vale da mesma forma para o meu ídolo Geddy Lee e para aquela menina que trabalhou comigo dez anos atrás e é minha “amiga” no Facebook. Toda a ideia por trás desta empresa só confirma minha convicção de investir cada vez mais meu tempo em livros e escrita de ficção, em videogames, em arte, em qualquer coisa capaz de transformar a realidade em algo mágico. O Facebook é um jornal nacional dos nossos amigos. Prefiro ignorar essa programação e tocar apenas as músicas selecionadas pela imaginação e pelo coração.

22.5.12

As lições de Angeli


 O Eric, amigo e parceiro blogueiro, escreveu uma crônica sobre o Bob Cuspe. Fui lá, fiz um comentário e percebi o quanto tinha sido influenciado pelo Chiclete com Banana. Fiquei inspirado para escrever mais. Ninguém me apresentou essa revista. Ela entrou na minha vida por acaso, nos gloriosos anos oitenta. Meu pai tinha a salutar mania de passar numa banca vinte e quatro hórica ali na esquina da rua Rafael de Barros com a Santos-Cubatão, no velho Paraíso. Sempre que passo por ali tenho uma saudade boa do velho Lessa. Ele era esquerdista, comprador de Pasquim e avesso à censura, deixava eu moleque de nove anos comprar todas as baixarias do Angeli. A maior parte daquela literatura me educou, outra me traumatizou. A primeira e mais forte memória que tenho do Chiclete é um pôster de página dupla onde aparecia uma fábrica sinistra, cheia de homens pelados. Tinha uma estilo multidão, meio “Onde está Wally?”. O Título do pôster é “Paulista também trepa”. O pequeno fragmento que me chocou foi um cara, pelado, carregando outro, pelado e desmaiado no carrinho de mão. A homossexualidade nunca foi uma coisa agressiva ou chocante para mim, mesmo na infância. Mas um cara carcando o outro, desmaiado, no carrinho de mão... Foi um pouco demais para o infante.


O Chiclete também me mostrou como é interessante ler depois de velho uma coisa que lia antigamente. Existem alguns exemplos similares. Lembro do ódio que tive ao ser obrigado a ler “A hora da estrela” de Clarice Lispector para o vestibular e do prazer que tive ao reler o livro um ano atrás. Confesso que continuo não entendendo porra nenhuma do que a Clarice escreve. Mas não é pra entender, é pra entrar, antes não entrava. O Chiclete na infância era uma catarse. Depois de velho, mais próximo da idade que o Angeli devia ter quando criou aquilo tudo, é uma lição de vida.


Basta ver o MEIA OITO. Muito antes do PT ganhar as eleições presidenciais, muito antes do mensalão, o Angeli já anteviu: ex-guerrilheiro no poder vai dar merda. Meu pai, até então meu ídolo na política, morreu petista, não chegou a ver o mensalão. Não sei se felizmente ou infelizmente. Não teve essa visão do Angeli. Tenho medo de pensar no que meu pai pensaria de mim hoje, um funcionário do Banco Central mega-liberal-cada-vez-mais-anarquista. Ele sempre teve um discurso que exaltava os heróis da esquerda. Acho justo, ele viveu a linha dura, eu não. Talvez o Angeli também não. Mas sem querer meu pai comprava o Chiclete pra mim e o MEIA OITO mostrava que havia algo de podre no reino do Partido dos Trabalhadores.


E vamos ao BOB CUSPE, afinal foi o responsável por essa crônica toda. O Eric perguntou, na crônica dele, se o BOB era um traidor do movimento. Achei a pergunta temática interessante. Todo paulistano sempre teve essa mania de perguntar se fulano era “traidor do movimento”. Eu nunca ide ntifiquei uma entidade responsável pela pureza dos “movimentos”. A gente ouvia falar do “movimento punk”, do “movimento dos carecas”, do “movimento heavy metal”, do “movimento dark”, e coisa e tal. Eu deixo esse tema para os especialistas no folclore da paulicéia, afinal de contas agora sou quase um candango e não tenho mais envergadura moral para falar sobre esses temas. Tampouco posso competir com o Eric nesse quesito. Ele é um cidadão que, perguntado “De onde você é?”, não responde “Sou de São Paulo”, responde “Sou do Cambuci”. Eu já escrevi sobre minha memórias do Paraíso, da transformação de um antro de gangues e vendinhas de portugueses num bairro novo chic com pet-shops e apartamentos de dois milhões de reais. Mas não me identifico com o bairro a ponto de responder de onde você é, sou do Paraíso. Mesmo porque o Paraíso, com todo respeito, não tem a personalidade altiva do Cambuci.


Só sei que o BOB CUSPE estragou todas as minhas pizzas. Sempre que pedíamos uma redonda lá no glorioso Edifício Ajaccio, eu me sentia ridículo, errado, imbecil. Na infância e na adolescência esse sentimento ainda tinha a ver com a filosofia de esquerda, me sentia uma criança pequeno burguesa explorando um suburbano que trabalhava aos domingos me entregando comida. Eu sempre comia achando que a mozzarella estava meio verde, cuspida pelo BOB. Hoje eu continuo pedindo pizza e continuo me sentindo ridículo. Só que agora a coisa é mais profunda, mais existencial. Confesso não estar nem aí pra situação do entregador. Me limito a ser simpático e comentar os resultados do Curinthia. Mas não adianta. O cuspe do BOB é pegajoso e venenoso, contamina para sempre. Toda pizza que peço me faz sentir idiota, me lembra a sociedade errada, a alimentação errada, as remunerações erradas. A minha vida errada. Uma indigestão eterna.


Acho que poderia passar parágrafos a fio falando de cada personagem, mas está me cansando. A lição fundamental é: no frigir dos ovos, ninguém presta. Relendo a antologia do Chiclete aqui em casa, aqui a beira dos 36 anos, percebi que tudo é uma merda. Ser de esquerda é uma merda. De direita também. Ser alienado é patético, ser intelectual é pedante. Ser pé-na-jaca é depressivo, ser certinho é entediante. Mas a melhor perspectiva para analisar a obra do Angeli é ser um paulistano da gema, corintiano fanático, frequentador do Pacaembú, comedor de bauru do Ponto Chic desde os oito anos, olhando o passado desde Brasília. Aí eu lembro daquelas charges do Angeli mostrando São Paulo do alto, o mar de prédios, a confusão cinza sem fim... Aquilo é a minha alma, minha história, e é daquilo que estou fugindo desesperadamente. Tentando ficar feliz por acordar com duas árvores e um raio de sol na minha janela ao invés de um mar de gavetas, em cada uma um contubérnio desinteressante.