22.5.12

As lições de Angeli


 O Eric, amigo e parceiro blogueiro, escreveu uma crônica sobre o Bob Cuspe. Fui lá, fiz um comentário e percebi o quanto tinha sido influenciado pelo Chiclete com Banana. Fiquei inspirado para escrever mais. Ninguém me apresentou essa revista. Ela entrou na minha vida por acaso, nos gloriosos anos oitenta. Meu pai tinha a salutar mania de passar numa banca vinte e quatro hórica ali na esquina da rua Rafael de Barros com a Santos-Cubatão, no velho Paraíso. Sempre que passo por ali tenho uma saudade boa do velho Lessa. Ele era esquerdista, comprador de Pasquim e avesso à censura, deixava eu moleque de nove anos comprar todas as baixarias do Angeli. A maior parte daquela literatura me educou, outra me traumatizou. A primeira e mais forte memória que tenho do Chiclete é um pôster de página dupla onde aparecia uma fábrica sinistra, cheia de homens pelados. Tinha uma estilo multidão, meio “Onde está Wally?”. O Título do pôster é “Paulista também trepa”. O pequeno fragmento que me chocou foi um cara, pelado, carregando outro, pelado e desmaiado no carrinho de mão. A homossexualidade nunca foi uma coisa agressiva ou chocante para mim, mesmo na infância. Mas um cara carcando o outro, desmaiado, no carrinho de mão... Foi um pouco demais para o infante.


O Chiclete também me mostrou como é interessante ler depois de velho uma coisa que lia antigamente. Existem alguns exemplos similares. Lembro do ódio que tive ao ser obrigado a ler “A hora da estrela” de Clarice Lispector para o vestibular e do prazer que tive ao reler o livro um ano atrás. Confesso que continuo não entendendo porra nenhuma do que a Clarice escreve. Mas não é pra entender, é pra entrar, antes não entrava. O Chiclete na infância era uma catarse. Depois de velho, mais próximo da idade que o Angeli devia ter quando criou aquilo tudo, é uma lição de vida.


Basta ver o MEIA OITO. Muito antes do PT ganhar as eleições presidenciais, muito antes do mensalão, o Angeli já anteviu: ex-guerrilheiro no poder vai dar merda. Meu pai, até então meu ídolo na política, morreu petista, não chegou a ver o mensalão. Não sei se felizmente ou infelizmente. Não teve essa visão do Angeli. Tenho medo de pensar no que meu pai pensaria de mim hoje, um funcionário do Banco Central mega-liberal-cada-vez-mais-anarquista. Ele sempre teve um discurso que exaltava os heróis da esquerda. Acho justo, ele viveu a linha dura, eu não. Talvez o Angeli também não. Mas sem querer meu pai comprava o Chiclete pra mim e o MEIA OITO mostrava que havia algo de podre no reino do Partido dos Trabalhadores.


E vamos ao BOB CUSPE, afinal foi o responsável por essa crônica toda. O Eric perguntou, na crônica dele, se o BOB era um traidor do movimento. Achei a pergunta temática interessante. Todo paulistano sempre teve essa mania de perguntar se fulano era “traidor do movimento”. Eu nunca ide ntifiquei uma entidade responsável pela pureza dos “movimentos”. A gente ouvia falar do “movimento punk”, do “movimento dos carecas”, do “movimento heavy metal”, do “movimento dark”, e coisa e tal. Eu deixo esse tema para os especialistas no folclore da paulicéia, afinal de contas agora sou quase um candango e não tenho mais envergadura moral para falar sobre esses temas. Tampouco posso competir com o Eric nesse quesito. Ele é um cidadão que, perguntado “De onde você é?”, não responde “Sou de São Paulo”, responde “Sou do Cambuci”. Eu já escrevi sobre minha memórias do Paraíso, da transformação de um antro de gangues e vendinhas de portugueses num bairro novo chic com pet-shops e apartamentos de dois milhões de reais. Mas não me identifico com o bairro a ponto de responder de onde você é, sou do Paraíso. Mesmo porque o Paraíso, com todo respeito, não tem a personalidade altiva do Cambuci.


Só sei que o BOB CUSPE estragou todas as minhas pizzas. Sempre que pedíamos uma redonda lá no glorioso Edifício Ajaccio, eu me sentia ridículo, errado, imbecil. Na infância e na adolescência esse sentimento ainda tinha a ver com a filosofia de esquerda, me sentia uma criança pequeno burguesa explorando um suburbano que trabalhava aos domingos me entregando comida. Eu sempre comia achando que a mozzarella estava meio verde, cuspida pelo BOB. Hoje eu continuo pedindo pizza e continuo me sentindo ridículo. Só que agora a coisa é mais profunda, mais existencial. Confesso não estar nem aí pra situação do entregador. Me limito a ser simpático e comentar os resultados do Curinthia. Mas não adianta. O cuspe do BOB é pegajoso e venenoso, contamina para sempre. Toda pizza que peço me faz sentir idiota, me lembra a sociedade errada, a alimentação errada, as remunerações erradas. A minha vida errada. Uma indigestão eterna.


Acho que poderia passar parágrafos a fio falando de cada personagem, mas está me cansando. A lição fundamental é: no frigir dos ovos, ninguém presta. Relendo a antologia do Chiclete aqui em casa, aqui a beira dos 36 anos, percebi que tudo é uma merda. Ser de esquerda é uma merda. De direita também. Ser alienado é patético, ser intelectual é pedante. Ser pé-na-jaca é depressivo, ser certinho é entediante. Mas a melhor perspectiva para analisar a obra do Angeli é ser um paulistano da gema, corintiano fanático, frequentador do Pacaembú, comedor de bauru do Ponto Chic desde os oito anos, olhando o passado desde Brasília. Aí eu lembro daquelas charges do Angeli mostrando São Paulo do alto, o mar de prédios, a confusão cinza sem fim... Aquilo é a minha alma, minha história, e é daquilo que estou fugindo desesperadamente. Tentando ficar feliz por acordar com duas árvores e um raio de sol na minha janela ao invés de um mar de gavetas, em cada uma um contubérnio desinteressante.