12.12.15

Opinião da opinião

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Segundo o Michaelis:

Opinião
sf (lat opinione) 1. Maneira de opinar; modo de ver pessoal; parecer, voto emitido ou manifestado sobre certo assunto. 2 Asserção sem fundamento; presunção. 3 Conceito, reputação. 4 Juízo ou sentimento que se manifesta em assunto sujeito a deliberação. 5 Capricho, teimosia. O. pública, Sociol: juízo coletivo adotado e exteriorizado por um grupo ou, em sociedades diferenciadas e estratificadas, por diversos grupos ou camadas sociais.

             Tenho filosofado muito sobre a opinião. Fui criado  numa família que se opunha à ditadura. Cresci ouvindo Nara cantando: “Podem me prender. Podem me bater. Podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião”. (Com essa bateria e esses músicos, é quase impossível não se apaixonar)


            Há um lado legal em ficar velho. Acho descolado lembrar que fiz vigília ao lado dos meus pais na porta do Hospital das Clínicas para torcer pela recuperação do Tancredo. Lembrar da Fafá de Belém cantando o hino nacional. O papai fazendo campanha para vereador pelo PMDB em 1982, com uns panfletinhos ao lado de figuras legais como Mario Covas, FHC, Flavio Bierrenbach e outros cuja trajetória posterior deixou menos ilustres.

            Na minha infância a opinão começava a bater asas no Brasil. Impossível não achar aquilo muito legal. Havia um movimento lindo pela democracia: Lula, FHC, Osmar Santos, Socrátes, Casagrande, meus ídolos do Corinthians, a democracia Corinthiana, meu pai fanático pela esquerda e pelo Corinthians, como não se apaixonar? Estávamos todos juntos, no mesmo palanque. Eu estive lá uma vez, molequinho, na praça da Sé.

       Ter opinião era exatamente como Nara: chique, descolado, afinado, moderno e revolucionário. Opinar era tocar bateria na bossa nova, quebrar tudo, romper os padrões, deixar a criatividade correr solta.

            Hoje, mais ou menos trinta anos depois, noto que ninguém me prendeu, ninguém me bateu, ninguém nem mesmo me deixou sem comer, mas eu mudei de opinião. Como diria Paulo Francis, conversando com Nelson Motta (e segundo esse último): aqui em Nova Iorque você vai deixar de lado suas últimas ilusões. Minha Nova Iorque foi estudar matemática, economia, história, antropologia, finanças públicas e toda sorte coisas que podem fazer um ser humano se tornar, segundo boa parte dos brasileiros, um “direitista”.

            Pergunto-me se Nara suportaria 2015. Michaelis talvez pudesse complementar a definição acima com coisas do tipo: “comentário no Facebook sobre assunto técnico sobre o qual não se tem nenhum conhecimento”; ou: “agressão anônima em rede social”; ou ainda: “criar meme utilizando imagem de político ou celebridade com cara de mau e frase de efeito em caixa alta”.

            A opinião foi perdendo o charme. Antes era Nara, hoje é Joelma e Ximbinha, na melhor das hipóteses. Coisa chata, medíocre, repetitiva, uma frase desses teclados que algumas pessoas insistem em chamar de forró e me fazem ver Dominguinhos revirar no túmulo como um peão. Eu arrisco dois motivos para explicar esse fenômeno. Agora sim esse texto vai ficar chato. Vou dar minha opinião sobre a opinião!

            O primeiro motivo vem da esquerda. Eu e muitos filhos de pais esquerdistas um dia finalmente percebemos que o fato de a esquerda ter lutado contra a ditadura não faz com que aquela esteja certa. Sem entrar nas atrocidades do governo atual (acho que eu e quase todo mundo não aguenta mais esse assunto), eu resumiria o argumento com a constatação de que a política econômica do Guido Mantega foi, sem tirar nem pôr, a mesma do Delfim Netto durante a ditadura: capitalismo de compadres, intervencionismo e irresponsabilidade fiscal. As consequências também foram as mesmas: inflação descontrolada, recessão, desemprego, enfim, a lista de sempre. Essa e muitas outras coisas fizeram Nara (e Chico, e Veríssimo e a geração dos meus pais) envelhecer,  desafinar, ficar meio chatinha.

            O segundo motivo, obviamente, vem da direita. Ao tentar preencher o vazio deixado pela desilusão com a esquerda, a tendência natural - afinal ninguém está reinventando a roda - foi tentar compreender melhor as teoria liberais, os defensores da economia de mercado, do intervencionismo menor do Estado e da ampliação das liberdades individuais. Nossa discussão política e econômica é exatamente a mesma que a Europa, os EUA e qualquer democracia mais antiga já teve dezenas de vezes. Aqui surge um novo problema para a opinião: como expressar e defender esse tipo de ideia no Brasil sem histeria.

            Provavelmente poucas coisas ilustram melhor o que eu chamei de histeria do que o Facebook durante o segundo turno das eleições de 2014. Aquilo foi realmente um horror. Ironicamente, em meio àquela Ópera Bufa, surgiu uma Nara, afinada, cantando baixinho. Tive uma epifania ao ler uma postagem de um amigo de faculdade. Amigo que não vejo há tempos, que provavelmente discorda da maioria das minhas opiniões. Ele escreveu: “Segue um texto, sereno e honesto, sobre os últimos anos da história política do país”. Abri o link e discordei de 80% do que estava escrito. Mas, de fato, era um texto sereno e honesto. Nesse dia me perguntei se realmente é tão difícil. Lembrei dos amigos que excluí da convivência pessoal e virtual.

            Separei dois vídeos para ilustrar essa questão. O primeiro mostra como os “liberais  ilustres” se apresentam no Brasil. Às vezes não basta ser assinante da Veja. Surge também a necessidade de gritar, chamar pro pau e usar uma farda.  


Felizmente, nem todos os liberais são tão deselegantes. Já escrevi várias vezes nesse Blog o quanto eu sou alucinado pela banda Rush (alguns leitores do blog me xingam quando entro nesse assunto, mas eu não resisto. Tentarei provar a pertinência adiante). Minha paixão pelo Rush não deriva apenas da qualidade da música, mas do caráter dos três caras, dos valores, da postura de vida. Não por acaso são defensores de uma ideologia liberal, individualista, etc.. O baterista, Neil Peart, é também uma espécie de mentor intelectual da banda. Escreveu a grande maioria das letras sozinho. Nos primeiros discos, no final dos anos 70 e início dos anos 80, uma das suas principais referências intelectuais foi a filósofa russa, radicada nos EUA, Ayn Rand.

 (Se houver algum leitor do blog que também goste de Rush, as referências mais diretas à filósofa são o lado A inteiro do álbum 2112 e a música “Anthem” - nome de livro homônimo de Ayn Rand, que eu estou lendo agora - do álbum Fly by Night).

Fucei diversos vídeos muito interessantes de Ayn Rand no YouTube e escolhi esse, abaixo, para tentar fazer um contraponto à histeria tanto dos Reinaldos Azevedos quanto da velha guarda esquerdista brasileira. Acho que faz justiça à proposta do meu amigo do Facebook nos quesitos serenidade e honestidade.
                        

            Nara, querida, opinião no Brasil de hoje é Carcará: pega, mata e come.  Eu e a maioria das pessoas que conheço mudariam a letra da sua música consagrada. Hoje todo mundo cantaria algo assim: “Podem me prender. Podem me bater. Podem até deixar-me sem comer, que eu prefiro ir pro bar, tomar cerveja e ver futebol, ficar o dia todo repassando bobagem no WhatsApp, do que discutir minha opinião com você”.

7.9.15

Quase quarenta

            Reflexões de botequim, totalmente desprovidas de valor psicológico, sociológico, humorístico e estilístico, proferidas por um quase quarentão.

            Sempre ouvi falar da tal crise da meia-idade. Hoje, aos trinta e nove, acho a ideia curiosa. Ao começar a filosofar sobre este momento tão singular na vida de um homem, escolhi alguns assuntos. Um mais inútil que o outro. O valor destes pensamentos talvez não esteja na utilidade, mas justamente no seu paradoxo filosófico: a paz de espírito.

      1.   Começar a se preocupar com a saúde

Poucas pessoas têm dor nas costas antes de se aproximar dos quarenta anos, eu suponho. Hoje, em agosto de 2015, eu me sinto compelido a ir à academia sob pena de sentir dor nas costas. Uma mudança interessante de paradigma. Até então o estímulo para fazer exercícios surgia de elucubrações mais nobres, como ter um corpo mais bonito, fazer mais sucesso no verão, pegar mais mulher ou, sei lá, botar uma foto mais bonita no Facebook.

Quando eu era moleque, alguém (provavelmente a tia Sarah) me deu uma camiseta de presente onde estava escrito: “Life begins at 40. So do...” e aí listava uma série de doenças. Ah, as deliciosas verdades dos chavões! Quem dera fosse só a dor nas costas. Hoje surge toda a sorte de perebas, tonturas, crises depressivas,  sem contar o pior: a recuperação de uma ressaca passa de um para três, quatro dias.

Eu sempre digo que jamais conseguirei escrever uma crônica sem falar do meu pai, e desta vez não será diferente. Papai foi maravilhoso por uma única e simples razão, ele me amou incondicionalmente. Mas, como todo mundo, tinha defeitos e quase todos eles correm no meu sangue. Tento lutar contra diariamente, uma luta inglória. Quanto mais velho fico, mais lembro das suas manias e dou risada da minha semelhança. Ele nunca fez um exercício na vida, pelo menos não depois de me botar no mundo. Era diabético e não se cuidava. Viveu pouco, para os padrões modernos, ficou abaixo da expectativa de vida dos machos brasileiros deste fim de século. Meu consolo foi uma conversa com ele, já acamado, poucos meses antes de morrer. “Filho, eu fiz tudo que quis. Fui feliz. Não se preocupe comigo. Cuide de você”.

Foi um consolo, em termos. Se ele estava tranquilo para morrer, ótimo para ele. A minha perspectiva era um pouco diferente. Eu estava prestes a perder a minha referência, meu melhor amigo, e a minha vida estava longe de qualquer coisa parecida com estabilidade financeira, psicológica ou existencial. Dez anos depois, posso dizer que consegui a estabilidade financeira. Só a financeira. Tomando como referência a frase lapidar do meu tio, irmão mais novo do meu pai: “Problema, problema mesmo, meu filho,  é o que a gente não resolve com dinheiro”, eu poderia dizer que estou na mesma.

Hoje eu vivo tentando comer saladas e legumes, tento não gastar mais do que ganho, tento fumar menos, beber menos, torcer menos pelo Corinthians, comer menos doces e gorduras, enfim, eu tento. Mas a epifania sagrada - essa sim!  - diferencia-me da herança paterna: eu tento, quando a dor nas costas aperta, ir mais de uma vez por semana na academia.

    2.   A  importância do sexo na vida

Uma das grandes libertações, ao chegar próximo dos quarenta, é perceber que o sexo é uma coisa secundária. Ou talvez, para ser mais preciso, dar-se conta de que o sexo, ao longo dos anos, tornou-se uma coisa secundária. Isso não significa dizer que ele tenha deixado de ser importante. Simplesmente deixou de ser uma obrigação, um fator determinante nas decisões. O alívio de perceber que, se ele acontecer, vai ser bom, mas se não acontecer, não será nenhuma tragédia.

Minha impressão ao longo de toda vida foi de que o mundo dá uma importância ao sexo que ele simplesmente não tem. Para mim é um instinto básico como comer e dormir. Quando eu estava no primeiro colegial de Humanas do Bandeirantes (eu sei que hoje já não tem esse nome, mas não me torrem o saco, eu sou um velho de quase quarenta anos) nós tivemos um professor sensacional de filosofia chamado Martini. Um dia ele deu uma aula sobre erotismo. Não é difícil imaginar que o bando de onanistas de quinze anos da classe logo conseguiu levar o assunto da aula para filmes pornôs.  O Martini não se abalou. Nos encarou com seu olhar sereno, sua carequinha reluzente e seus descabelados cãs laterais e disse algo que, lamentavelmente, eu nunca vou lembrar com exatidão. Mas era mais ou menos isso: “Reparem que o filme pornográfico tira de vocês o melhor do sexo: a intimidade, o segredo, a descoberta”.

Eu ouvi esse pensamento, agora fazendo as contas, em 1990. Hoje, vinte e cinco anos depois, confesso que essa aula assombrou toda a minha vida sexual. E, obviamente, eu dou risada de pensar no quanto ele estava certo. Dou uma risada triste, na verdade, porque a frase também explica muitas outras questões: a repressão contra os homossexuais, a frustração de tantos casais, enfim, explica muita coisa. Sexo é coisa para quatro paredes, não é coisa para reza no plenário do Congresso Nacional.

        3.   A importância da opinião dos outros

Voltando ao velho Bandeirantes, desta vez quero falar de uma professora de Geografia que eu tive no primeiro colegial. Ela se chamava Doli. Já tinha uma certa idade naquele tempo, em 1991. Outro dia soube por uma colega que ela estava viva e em plena atividade. Fiquei muito feliz. Enfim, a história que quero contar é a seguinte. A Doli, analisando em perspectiva, era meio sem noção, ela nos dava, alunos de quatorze anos, a mesma aula da universidade. Não tinha livro-texto, itens na lousa, porra nenhuma. Eu sinceramente não sei até  hoje se isso, didaticamente, era bom ou ruim. Sei que era o jeito dela, e a gente que se virasse. Uma coisa era certa, era uma cabeça privilegiada, inteligentíssima. Tinha uma personalidade única e ideias revolucionárias (provavelmente hoje eu não concordaria com essas ideias, mas para um adolescente esquerdista eram maravilhosas).

Lembrei da Doli para escrever sobre a opinião dos outros porque um dia ela foi dar aula com uma sapatilha horrorosa, de couro branco, com bolinhas azuis e alaranjadas esparsas ao longo do modelo. Até para um menino adolescente, cagando e andando para moda, a sapatilha doía na alma. Mas até aí tudo bem, fazia parte da excentricidade legal da professora. Ocorreu que duas meninas na primeira carteira, talvez extasiadas pelo cansaço da última aula de sexta-feira, simplesmente não conseguiram tirar o foco da sapatilha e riam e faziam piadas compulsivamente.

Nesse momento a Doli parou a aula (e me ganhou para sempre). Sem olhar para as duas meninas, sem se irritar e sem dar sermão, fez um discurso sobre o quanto é bom e libertador viver sem ligar para o que os outros pensam. Ela devia ter uns setenta anos nesse dia. Eu tinha quinze. Só hoje, com trinta e nove, eu sei avaliar o significado do que ela disse.

     4.    Ser de esquerda. Ou ainda: Nunca pensei que odiaria Chico Buarque

            Sou um músico frustrado. Sou filho de um cara que aos sete anos dava concertos ao piano. A professora dele brigou com meu avô (ou ao menos reza a lenda familiar). Ela queria tirá-lo da escola para se dedicar exclusivamente ao piano. Minha mãe não fica atrás. Uma voz grave maravilhosa, uma intérprete digna de um teatro Bibi Ferreira. Quando os dois se juntavam ao piano lá em casa, só saía coisa linda. Desconheço estudos de genética que comprovem a passagem de talentos da arte de pais para filhos. As amostras que chegam ao grande público definitivamente não ajudam. Eu sou uma delas. Anos e anos de estudos musicais. Guitarras e pianos exemplares à disposição. Os melhores professores. Nada resolveu. Nada saiu. “Moita. Faltava-lhe o sopro.”, como diria o papai, citando Coelho Neto.

            Os esforços educacionais dos pais da geração da ditadura, como os meus, não incluíam apenas a educação musical, esportiva, religiosa, espiritual, enfim, tudo aquilo que muitos deles não tiveram em suas infâncias e, muito generosamente, é bom frisar, ansiavam em prover aos filhos. Incluía também uma pesada carga de ”pensamento marxista”. Coloco o termo entre aspas de propósito, para ser honesto com quem me lê, afinal nunca li mais do que um capítulo do “Capital” e tenho horror à qualquer tipo de sociologia de botequim. Os pais, os professores, intelectuais e todos daquela geração criaram no Brasil o mito, um arquétipo mesmo, de que a ditadura era o mal e a esquerda era o bem. Um filme da Disney, maniqueísta, que pode ser tosco e medíocre nos cinemas, mas é trágico, como comprovamos hoje em dia, na vida real.

           O Bandeirantes é um colégio, pelo que me consta, historicamente ligado ao PSDB e, principalmente, propenso à uma ideologia liberal. A competição sempre foi fomentada e o objetivo da escola era preparar o aluno para a vida e - por que não?-  para essa entidade bisonha e assombrosa que chamam de “mercado”. Pois bem, nesta mesma escola eu tive um professor de Geografia que,  na sétima série, nos fez ler dois livros: “O Capitalismo”, de Paul Singer, e “O que é o Socialismo”, de Maurício Tratemberg. Esquecendo o fato de que um cidadão tem que ser muito imbecil para achar que uma criança de treze anos pode entender, na sua essência, o que é capitalismo e socialismo (sem ao menos, por exemplo, ter estudado antes a história dos séculos XIX e XX), a pergunta que eu me faço até hoje é: por que ele não pediu para que lêssemos “O Caminho da Servidão” do Hayek? Ou um Von Misesinho pra temperar? 
           
            Esse professor talvez seja uma mau exemplo, era um tosco, bem diferente dos professores do Band. Mas o padrão se mantinha entre outros professores, maravilhosos, generosos, inteligentíssimos, mas igualmente imbuídos da mais profunda bitolagem esquerdista. Outra pergunta que me faço hoje (e que na verdade me aterroriza) é: se no Bandeirantes era assim, imagine nos outros colégios de São Paulo, os que são assumidamente de esquerda. Na verdade não preciso imaginar. Tenho dezenas de amigos que pensam dessa maneira. Eu mesmo pensei assim por muitos anos.

            Quando eu prestei Vestibular, aos dezessete anos, não fazia a mais remota ideia do que eu queria da vida. Acabei passando em Administração na USP e em algumas outras faculdades. Não estava gostando de nada. Dois anos depois, prestei Relações Internacionais na PUC-SP e achei que tinha encontrado o que gostava. Empolgado com a PUC, disse ao papai que queria largar a Administração. Não tinha nada a ver comigo. Meu pai, querido, saudoso e sábio (mesmo sendo um esquerdista bundão como todos os de hoje, e acho que provavelmente continuaria sendo se vivo estivesse), me disse: “Nunca abandone essa faculdade. Você nunca sabe o que ela vai te trazer no futuro. Segura a onda. Fica lá.”

            A faculdade de Administração, que eu odiava, me ensinou muita coisa. Me ensinou a enxergar números. Proporcionou-me todos os empregos que eu já tive, meu sustento honesto. Essa faculdade me fez ver que eu posso não ter talento pra música, mas me proporcionou uma poesia, irônica com certeza, uma clareza para interpretar os discursos falsos, populistas, toscos, desonestos. Uma clareza para dizer que tudo o que Chico Buarque diz, que não seja arte, é tosco. Que tudo o que Luís Fernando Veríssimo faz, que não seja crônica, é lixo. E que tudo o que Laerte faz, hoje em dia, inclusive charge, é vômito.

            Eu propus essa discussão num grupo de amigos do Bandeirantes no WhatsApp: até que ponto se deve tolerar um artista que afronta seus princípios éticos, morais, etc.? Citei os acima mencionados, que não consigo nem pensar na existência, lembrei da participação da Gal Costa no ato de desagravo ao ACM, lembrei de quando Axl Rose lançou uma cadeira do último andar do Maksoud Plaza, mas confessei que alguns artistas, de tanto que amo, não consigo deixar de relevar as bizarrices éticas ou ideológicas: Gabo, Woody Allen e outros. Mas essa é uma discussão que merece um texto exclusivo, de tão interessante.

            Tenho uma teoria de botequim: acho que o PT só está no poder até hoje, especialmente nestas últimas eleições, em que a contagem foi tão apertada, porque o decisivo foi o voto da turma do “é tudo a mesma merda”. De fato, se o PT é ruim, a oposição também não ajuda. Óbvio. O diferencial, se um dia ele chegar, e segundo minha modesta sociologia de botequim, virá da matemática e da arte.

            Da arte virá se alguns artistas brasileiros um dia perceberem que a vida não é um filme da Disney, maniqueísta, que não há bem contra o mal, que não há luta de classes, que não há uma classe média egoísta contra os pobres, como querem pregar alguns arautos do “de que lado você está”, enfim, das mediocridades que os Laertes estão vomitando. E, positivamente, não virá dos artistas e intelectuais chatos, malas sem alça, posando de honestos, que tentam associar a revolta contra as atrocidades do governo a meia dúzia de alucinados direitistas, pregadores de intervenções militares e outras bizarrices, como se isso representasse a maioria da oposição.

            E a matemática... Ah! Essa será nossa redenção!

            Eu hoje sou funcionário público. Sou analista do Banco Central. Meus colegas estão em greve. A proposta do governo não é suficiente. Outras carreiras do serviço público estão ganhando mais do que nós. O Banco Central está desvalorizado em relação às outras  carreiras. A lista de demandas é longa e, como sempre, “justa”.

            A pergunta matemática é simples. Eu me lembro, há alguns anos, de ver na TV a cabo o debate do Obama com o candidato republicano. Obama prometia reformar o sistema de saúde pública. O candidato republicano perguntou: “Só há duas formas de fazer isso: ou você aumenta impostos ou você corta gastos na área militar”. O mundo sabe qual foi a opção. O esquerdista Obama foi obrigado, antes de ser eleito, a dizer onde faria os cortes orçamentários que viabilizariam sua proposta. No Brasil, uma pergunta simples e direta como essa automaticamente se transformaria numa animação de monstros contra fadas encantadas, inseridas num programa eleitoral de um João Santana da vida. O massacre de que foi vítima Marina Silva nas últimas eleições, uma esquerdista corajosa o suficiente para trazer questões maduras ao debate (como a questão da independência do Banco Central), é prova incontestável.

          Quando o pessoal do sindicato do Banco Central me pergunta por que eu não aderi à greve,  a minha pergunta (nunca respondida) é muito simples: “Se nós vamos ganhar mais, quem vai ganhar menos?”.  Eu disse para o companheiro sindicalista da CUT, que fazia protesto contra o governo Dilma na porta do BC e exigia aumento para os técnicos: “Meu amigo, há seis meses você estava aqui fazendo campanha para o PT. Seu panfleto chamava o ex-presidente Armínio Fraga de terrorista (texto de Emir Sader). O governo que você ajudou a eleger está cortando o seguro-desemprego de quem ganha salário mínimo. De onde vai sair o dinheiro para pagar a duplicação do salário dos técnicos que você está propondo?”.

            Meus cada vez mais escassos amigos esquerdistas me perguntam: “Onde está você, Iatã? Aquele guerreiro?”. Eu respondo que estou aqui, como sempre. Acredito no que sempre acreditei. Tenho os mesmos sonhos da adolescência. Mas matemática é matemática. Tudo o que eu peço é a minha pergunta não respondida. Quem vai pagar a conta?

       5.   O valor do trabalho e o sentido da vida

Trabalhar é bom e é importante. Ponto final. Mas se eu quiser ser honesto comigo mesmo, do alto dos meus quase quarenta anos eu diria, sem a menor sombra de dúvida: se eu pudesse, não trabalharia nunca mais. A coisa que mais queria na vida era poder passar meus dias tomando cerveja, lendo, escrevendo, tocando violão (mesmo sem o menor talento), fazendo poesias, enfim, fazendo o que todo mundo acha que sabe fazer nesses tempos de redes sociais, compartilhamentos, curtições e império da opiniãozinha.

Um aparente paradoxo filosófico que se resolveu nunca conversa de botequim (uma verdadeira sociologia de botequim) com meu sábio amigo Caio Macedo Carvalhal, quando eu, desempregado, com mais de trinta anos, morando com minha mãe, reclamava, depois de tudo o que tinha trabalhado e estudado, de ter que dar aulinhas de inglês, numa escola meia-boca, para ganhar dez méréis. Ele me disse: “Thai (nosso apelido carinhoso, abreviação de “Taiwan”, corruptela de “Iatã”), a man`s gotta do what a man`s gotta do”.

A frase, aparentemente “non sense”do meu amigo resume tudo o que a vida me ensinou em quase quarenta anos e que faz ter verdadeiro horror à qualquer política de esquerda: a ilusão de que alguém, um dia, sem explicação, vai aparecer para resolver seus problemas. Esqueça a lógica, esqueça a matemática, evoque qualquer ideologia generosa que te vier à mente e tudo estará resolvido. Talvez a única coisa que não tenha mudado desde os meus dez anos até hoje é a minha birra com filmes da Disney.

30.4.15

O que é que o Kiwi tem


       O Kiwi é o pássaro símbolo da Nova Zelândia. Há, de fato, semelhanças entre os dois. O Kiwi é uma mistura de galinha com porco espinho. Bonito, raro, sem asas e sem maiores pretensões. Nunca vai atacar ninguém e nunca alçará voos panorâmicos. Segue, porém, com sua vidinha muito bem vivida, de bem com a natureza e todos os que o rodeiam. Assim são os neozelandeses: simpáticos, afáveis, carinhosos até. Só ameaçam algumas bicadas quando se dirige sem o cinto de segurança, quando se passa de 100 km/h e, principalmente, quando se tenta entrar com algum alimento, semente ou animal estranho à ilha. As espécies estrangeiras que entraram no passado já causam estrago suficiente.

         Uma das primeiras e mais divertidas coisas que aprendemos foi como falar inglês neozelandês. Para nossa surpresa foi bem simples. Basta trocar qualquer, qualquer mesmo, som de “é” pelo som de “ih” (o “ih” é o melhor que pude encontrar para descrever um som de “i” meio alongadinho). Os exemplos são, em sua maioria, retirados das (terríveis) rádios que fomos obrigados a ouvir no carro ao longo de mais de 1500 Km percorridos em vinte dias. Portanto, “Best price ever!” ficaria “Bihst price Ihhver!”. “Ihxecelent!”. “No Strihss!”. E assim por adiante. Antes que me esqueça, não poderia faltar o slogan pentelho que martelava o tempo inteiro na rádio mais popular: “Mou Music! Lihss Talk!”

         Ano passado, enquanto planejávamos esta viagem com meses de antecedência (como um bom casal “wannabe” de primeiro mundo), as discussões sobre as eleições presidenciais em grupos de What's Up estavam bombando. Numa delas eu mencionei que viria passar férias na Nova Zelândia no ano seguinte e, se Dilma vencesse, havia uma boa chance de eu não voltar nunca mais. Um amigo petista ironizou minha decisão: “Vai morar num lugar que tem mais ovelha do que gente?”. Naquele momento não respondi nada. Viajando de carro do norte ao sul do país, eu não apenas comprovei que, de fato, há muitas ovelhas por lá, mas percebi que a resposta era óbvia. Um país com mais animais do que gente está fadado ao sucesso. Um dos guias turísticos locais observou, no entanto, que o país enfrenta uma certa crise econômica: antigamente havia cerca de dezesseis ovelhas por habitante. Hoje, apenas umas oito. Não foi suficiente para afugentar o único casal de brasileiros que encontramos na viagem. Bem mais jovens do que nós, entre as ovelhas declinantes e a Dilma, eles optaram pelas ovelhas. Não pretendem voltar tão cedo.

         Falar do desenvolvimento da Nova Zelândia é chover no molhado, assim como choveu sem parar ao longo de toda nossa viagem. Mesmo assim, há momentos em que a coisa fica meio surrealista, especialmente para brasileiros. Enquanto fazíamos uma trilha de 20 Km, montanha acima e abaixo, no Parque Nacional de Tongariro (Quem me conhece sabe que eu não tenho, nem de longe, nem depois de um ano de academia, preparo físico para uma trilha desse tipo. A culpa foi minha que, mesmo após reiterados alertas da minha noiva, a.k.a. The Trip Advisor Girl, não fiz a devida revisão e crítica ao roteiro que ela elaborou), o nosso guia me perguntou se a polícia no Brasil tinha autorização para usar armas de fogo. O mesmo guia, ao perguntarmos sobre a corrupção dos políticos neozelandeses, respondeu que “ela praticamente não existe”. Perguntei, sem sucesso, se ele se lembrava de um caso para nos contar.

(Parêntese cultural: para quem gosta do Senhor dos Anéis, esta trilha passa pelos cenários onde foram filmadas ou inspiradas para digitalização as cenas do Mount Doom, o vulcão onde Frodo leva o anel para ser destruído, e as montanhas negras de Isengaard, onde os Orcs forjavam as armas antes da invadir Helm’s Deep no segundo filme da série)

            Os comentários surrealistas do simpático guia Jono me lembraram uma história, acontecida com um tio meu, que meu pai adorava contar. Um dia meu tio estava embarcando num avião na Suíça e sua mala passou do peso máximo permitido. Ele, talvez meio sem querer, por mero hábito tupiniquim, fez um comentário do tipo: “Puxa, mas não dá pra dar um jeitinho?”. Papai contava e repetia essa história não pelo fato em si, mas pelo detalhe, que ele adorava: não é que a funcionária suíça negou o pedido. Ela simplesmente não entendeu o que ele estava pedindo. O conceito de “dar um jeitinho” não faz parte do universo cognitivo de um cidadão da Suíça.

            Nosso guia vive num universo parecido. Coisas como ausência de Estado, violência generalizada e corrupção endêmica não lhe pareciam muito familiares. Quando contei que a polícia do Rio de Janeiro andava armada e isso não era suficiente, já que os traficantes tinham armas a que nem o exército brasileiro tinha acesso, quando passei um singelo resumo sobre o que era a periferia de São Paulo, os morros do Rio e os sertões brasileiros, ele me olhou com olhos arregalados e disse um sonoro: “Oh…! Really?”.  

            Meu atual estado de espírito em relação ao Brasil pode ser resumido pelo fato de eu fiquei dois dias de cama, em depressão profunda, depois que o PT venceu as últimas eleições. Sinceramente, não tenho mais o menor pudor de assumir meu direitismo, minha desilusão com a bobajada esquerdista e politicamente correta que me enfiaram goela abaixo durante toda minha vida escolar e universitária, e dizer que desisti de ter esperança. Justamente por isso, decidi evitar nesse texto qualquer tentativa de sociologia de botequim que tente explicar o que é que o Kiwi tem e a Baiana não tem…

            Prefiro me ater aos fatos. Existe uma coisa nos neozelandeses que transcende a crítica Edmottiana (com a qual concordo plenamente), esse saco cheio com o brasileiro simplório e grosseiro vis a vis a admiração pelo estrangeiro refinado. Os kiwis são mais que educados, são comoventes. Existe neles uma mistura admirável da eficiência e frieza inglesas na gestão do trabalho e da economia com um aconchego, um carinho caipira, uma candura que parece fluir direto das pastagens de ovelhas e das montanhas nevadas. 

            Imagine que você está parado numa mesa desconconfortabilíssima de um Mac’Donalds, cansado, depois de vinte dias de viagem, carregando três malas velhas e pesadas, a caminho de um trem que vai iniciar uma longa, muito longa, jornada de volta pra casa, do outro lado do mundo. Meu mau humor era contagiante, óbvio, agressivo. Ao meu lado, um velhinho neozelandês lia o jornal. De repente ele levanta, naturalmente, chega ao meu lado e diz: “Would you like to take a look at the paper?”. Fiquei tão comovido com tamanha educação que sorri de orelha a orelha. Ele perguntou se nós estávamos de férias. Quando falei que era brasileiro, ele fez os tradicionais elogios ao Pelé e ao Neymar, desejou boa viagem e se foi, mancando devagar.

            Cenas como essa se repetiram ao longo de toda viagem. Pessoas dando bom dia na rua. Sorrisos gratuitos. Quando chegávamos aos motéis das cidades do interior, os donos sempre nos ofereciam um “fresh, creamy, farmy milk” antes de dar as chaves do quarto. Eu dizia pra Vivi que aquilo parecia a história do meu sobrinho Matheus. Um dia minha cunhada Carol falou pra ele: “Filho, você não vai comer esse pão que a mamãe fez com tanto carinho?”. No dia seguinte, no café da manhã, ela perguntou: “Matheus, o que você quer comer?”. Ele respondeu que queria pão com carinho. É mais ou menos isso que eu quero explicar: um check out estendido e um quarto com mais canais de TV a cabo estão para um pão com geleia assim como um um “fresh, creamy, farmy milk” está para um pão com carinho.

      Essa minha percepção ficou ainda mais evidente quando pegamos um ônibus turístico em Queenstown para visitar os fiordes. A viagem era meio longa e, na volta, o motorista-guia colocou um DVD do filme “The World’s Fastest Indian” (http://www.imdb.com/title/tt0412080/). A história em si não é nada de mais, um senhor neozelandês que vai aos EUA tentar bater um recorde de velocidade com sua moto. O velho enredo Disney de um personagem desacreditado que chega à glória no final, com aplausos ao espírito de superação e blá blá blá. Mas a interpretação de um ator monstro como Anthony Hopkins dá a exata medida de como seria um neozelandês nos EUA. Ele era tão simples, tão delicado, que as pessoas achavam que ele estava de sacanagem. Isso é, de longe, a melhor coisa do filme. Dali do ônibus, depois de dezenove dias de Nova Zelândia, o filme ficou incrivelmente verossímil, e mil vezes mais engraçado.

            Voltar ao Brasil, por sua vez, é a velha história do Tom Jobim, de Nova Iorque é uma merda e tal e vice-versa. Nada a acrescentar. Meu amor pelo Brasil é grande e eterno, mas o desânimo também aumenta a cada dia. Se não consigo passar um dia de férias sem ter saudade de um arroz com feijão e de um joguinho do Curinthia, passo mal ao voltar, pegar um táxi para ir ao dentista e ver o cara atravessar a faixa de pedestre à toda, enquanto um menino Down atravessava com dificuldade, acenando desesperadamente com os braços pra ele desacelerar (Isso aconteceu hoje, horas antes de escrever esse texto). Vou seguir sonhando com Kiwis e Baianas. Os Kiwis estão à beira da extinção. Vejamos o que será das baianas.