30.4.15

O que é que o Kiwi tem


       O Kiwi é o pássaro símbolo da Nova Zelândia. Há, de fato, semelhanças entre os dois. O Kiwi é uma mistura de galinha com porco espinho. Bonito, raro, sem asas e sem maiores pretensões. Nunca vai atacar ninguém e nunca alçará voos panorâmicos. Segue, porém, com sua vidinha muito bem vivida, de bem com a natureza e todos os que o rodeiam. Assim são os neozelandeses: simpáticos, afáveis, carinhosos até. Só ameaçam algumas bicadas quando se dirige sem o cinto de segurança, quando se passa de 100 km/h e, principalmente, quando se tenta entrar com algum alimento, semente ou animal estranho à ilha. As espécies estrangeiras que entraram no passado já causam estrago suficiente.

         Uma das primeiras e mais divertidas coisas que aprendemos foi como falar inglês neozelandês. Para nossa surpresa foi bem simples. Basta trocar qualquer, qualquer mesmo, som de “é” pelo som de “ih” (o “ih” é o melhor que pude encontrar para descrever um som de “i” meio alongadinho). Os exemplos são, em sua maioria, retirados das (terríveis) rádios que fomos obrigados a ouvir no carro ao longo de mais de 1500 Km percorridos em vinte dias. Portanto, “Best price ever!” ficaria “Bihst price Ihhver!”. “Ihxecelent!”. “No Strihss!”. E assim por adiante. Antes que me esqueça, não poderia faltar o slogan pentelho que martelava o tempo inteiro na rádio mais popular: “Mou Music! Lihss Talk!”

         Ano passado, enquanto planejávamos esta viagem com meses de antecedência (como um bom casal “wannabe” de primeiro mundo), as discussões sobre as eleições presidenciais em grupos de What's Up estavam bombando. Numa delas eu mencionei que viria passar férias na Nova Zelândia no ano seguinte e, se Dilma vencesse, havia uma boa chance de eu não voltar nunca mais. Um amigo petista ironizou minha decisão: “Vai morar num lugar que tem mais ovelha do que gente?”. Naquele momento não respondi nada. Viajando de carro do norte ao sul do país, eu não apenas comprovei que, de fato, há muitas ovelhas por lá, mas percebi que a resposta era óbvia. Um país com mais animais do que gente está fadado ao sucesso. Um dos guias turísticos locais observou, no entanto, que o país enfrenta uma certa crise econômica: antigamente havia cerca de dezesseis ovelhas por habitante. Hoje, apenas umas oito. Não foi suficiente para afugentar o único casal de brasileiros que encontramos na viagem. Bem mais jovens do que nós, entre as ovelhas declinantes e a Dilma, eles optaram pelas ovelhas. Não pretendem voltar tão cedo.

         Falar do desenvolvimento da Nova Zelândia é chover no molhado, assim como choveu sem parar ao longo de toda nossa viagem. Mesmo assim, há momentos em que a coisa fica meio surrealista, especialmente para brasileiros. Enquanto fazíamos uma trilha de 20 Km, montanha acima e abaixo, no Parque Nacional de Tongariro (Quem me conhece sabe que eu não tenho, nem de longe, nem depois de um ano de academia, preparo físico para uma trilha desse tipo. A culpa foi minha que, mesmo após reiterados alertas da minha noiva, a.k.a. The Trip Advisor Girl, não fiz a devida revisão e crítica ao roteiro que ela elaborou), o nosso guia me perguntou se a polícia no Brasil tinha autorização para usar armas de fogo. O mesmo guia, ao perguntarmos sobre a corrupção dos políticos neozelandeses, respondeu que “ela praticamente não existe”. Perguntei, sem sucesso, se ele se lembrava de um caso para nos contar.

(Parêntese cultural: para quem gosta do Senhor dos Anéis, esta trilha passa pelos cenários onde foram filmadas ou inspiradas para digitalização as cenas do Mount Doom, o vulcão onde Frodo leva o anel para ser destruído, e as montanhas negras de Isengaard, onde os Orcs forjavam as armas antes da invadir Helm’s Deep no segundo filme da série)

            Os comentários surrealistas do simpático guia Jono me lembraram uma história, acontecida com um tio meu, que meu pai adorava contar. Um dia meu tio estava embarcando num avião na Suíça e sua mala passou do peso máximo permitido. Ele, talvez meio sem querer, por mero hábito tupiniquim, fez um comentário do tipo: “Puxa, mas não dá pra dar um jeitinho?”. Papai contava e repetia essa história não pelo fato em si, mas pelo detalhe, que ele adorava: não é que a funcionária suíça negou o pedido. Ela simplesmente não entendeu o que ele estava pedindo. O conceito de “dar um jeitinho” não faz parte do universo cognitivo de um cidadão da Suíça.

            Nosso guia vive num universo parecido. Coisas como ausência de Estado, violência generalizada e corrupção endêmica não lhe pareciam muito familiares. Quando contei que a polícia do Rio de Janeiro andava armada e isso não era suficiente, já que os traficantes tinham armas a que nem o exército brasileiro tinha acesso, quando passei um singelo resumo sobre o que era a periferia de São Paulo, os morros do Rio e os sertões brasileiros, ele me olhou com olhos arregalados e disse um sonoro: “Oh…! Really?”.  

            Meu atual estado de espírito em relação ao Brasil pode ser resumido pelo fato de eu fiquei dois dias de cama, em depressão profunda, depois que o PT venceu as últimas eleições. Sinceramente, não tenho mais o menor pudor de assumir meu direitismo, minha desilusão com a bobajada esquerdista e politicamente correta que me enfiaram goela abaixo durante toda minha vida escolar e universitária, e dizer que desisti de ter esperança. Justamente por isso, decidi evitar nesse texto qualquer tentativa de sociologia de botequim que tente explicar o que é que o Kiwi tem e a Baiana não tem…

            Prefiro me ater aos fatos. Existe uma coisa nos neozelandeses que transcende a crítica Edmottiana (com a qual concordo plenamente), esse saco cheio com o brasileiro simplório e grosseiro vis a vis a admiração pelo estrangeiro refinado. Os kiwis são mais que educados, são comoventes. Existe neles uma mistura admirável da eficiência e frieza inglesas na gestão do trabalho e da economia com um aconchego, um carinho caipira, uma candura que parece fluir direto das pastagens de ovelhas e das montanhas nevadas. 

            Imagine que você está parado numa mesa desconconfortabilíssima de um Mac’Donalds, cansado, depois de vinte dias de viagem, carregando três malas velhas e pesadas, a caminho de um trem que vai iniciar uma longa, muito longa, jornada de volta pra casa, do outro lado do mundo. Meu mau humor era contagiante, óbvio, agressivo. Ao meu lado, um velhinho neozelandês lia o jornal. De repente ele levanta, naturalmente, chega ao meu lado e diz: “Would you like to take a look at the paper?”. Fiquei tão comovido com tamanha educação que sorri de orelha a orelha. Ele perguntou se nós estávamos de férias. Quando falei que era brasileiro, ele fez os tradicionais elogios ao Pelé e ao Neymar, desejou boa viagem e se foi, mancando devagar.

            Cenas como essa se repetiram ao longo de toda viagem. Pessoas dando bom dia na rua. Sorrisos gratuitos. Quando chegávamos aos motéis das cidades do interior, os donos sempre nos ofereciam um “fresh, creamy, farmy milk” antes de dar as chaves do quarto. Eu dizia pra Vivi que aquilo parecia a história do meu sobrinho Matheus. Um dia minha cunhada Carol falou pra ele: “Filho, você não vai comer esse pão que a mamãe fez com tanto carinho?”. No dia seguinte, no café da manhã, ela perguntou: “Matheus, o que você quer comer?”. Ele respondeu que queria pão com carinho. É mais ou menos isso que eu quero explicar: um check out estendido e um quarto com mais canais de TV a cabo estão para um pão com geleia assim como um um “fresh, creamy, farmy milk” está para um pão com carinho.

      Essa minha percepção ficou ainda mais evidente quando pegamos um ônibus turístico em Queenstown para visitar os fiordes. A viagem era meio longa e, na volta, o motorista-guia colocou um DVD do filme “The World’s Fastest Indian” (http://www.imdb.com/title/tt0412080/). A história em si não é nada de mais, um senhor neozelandês que vai aos EUA tentar bater um recorde de velocidade com sua moto. O velho enredo Disney de um personagem desacreditado que chega à glória no final, com aplausos ao espírito de superação e blá blá blá. Mas a interpretação de um ator monstro como Anthony Hopkins dá a exata medida de como seria um neozelandês nos EUA. Ele era tão simples, tão delicado, que as pessoas achavam que ele estava de sacanagem. Isso é, de longe, a melhor coisa do filme. Dali do ônibus, depois de dezenove dias de Nova Zelândia, o filme ficou incrivelmente verossímil, e mil vezes mais engraçado.

            Voltar ao Brasil, por sua vez, é a velha história do Tom Jobim, de Nova Iorque é uma merda e tal e vice-versa. Nada a acrescentar. Meu amor pelo Brasil é grande e eterno, mas o desânimo também aumenta a cada dia. Se não consigo passar um dia de férias sem ter saudade de um arroz com feijão e de um joguinho do Curinthia, passo mal ao voltar, pegar um táxi para ir ao dentista e ver o cara atravessar a faixa de pedestre à toda, enquanto um menino Down atravessava com dificuldade, acenando desesperadamente com os braços pra ele desacelerar (Isso aconteceu hoje, horas antes de escrever esse texto). Vou seguir sonhando com Kiwis e Baianas. Os Kiwis estão à beira da extinção. Vejamos o que será das baianas.