Reflexões de
botequim, totalmente desprovidas de valor psicológico, sociológico, humorístico
e estilístico, proferidas por um quase quarentão.
Sempre ouvi falar da tal crise da meia-idade. Hoje, aos trinta e nove, acho a ideia
curiosa. Ao começar a filosofar sobre este
momento tão singular na vida de um homem, escolhi alguns assuntos. Um mais inútil que o outro. O valor destes pensamentos talvez
não esteja na utilidade, mas justamente no seu paradoxo filosófico: a paz de
espírito.
1.
Começar a se preocupar com a saúde
Poucas pessoas têm dor nas costas antes de se aproximar dos
quarenta anos, eu suponho. Hoje, em agosto de 2015, eu me sinto compelido a ir
à academia sob pena de sentir dor nas costas. Uma mudança interessante de
paradigma. Até então o estímulo para fazer exercícios surgia de elucubrações
mais nobres, como ter um corpo mais bonito, fazer mais sucesso no verão, pegar
mais mulher ou, sei lá, botar uma foto mais bonita no Facebook.
Quando eu era moleque, alguém (provavelmente a tia Sarah) me
deu uma camiseta de presente onde estava escrito: “Life begins at 40. So do...”
e aí listava uma série de doenças. Ah, as deliciosas verdades dos chavões! Quem
dera fosse só a dor nas costas. Hoje surge toda a sorte de perebas, tonturas,
crises depressivas, sem contar o pior: a
recuperação de uma ressaca passa de um para três, quatro dias.
Eu sempre digo que jamais conseguirei escrever uma crônica
sem falar do meu pai, e desta vez não será diferente. Papai foi maravilhoso por
uma única e simples razão, ele me amou incondicionalmente. Mas, como todo
mundo, tinha defeitos e quase todos eles correm no meu sangue. Tento lutar
contra diariamente, uma luta inglória. Quanto mais velho fico, mais lembro das
suas manias e dou risada da minha semelhança. Ele nunca fez um exercício na
vida, pelo menos não depois de me botar no mundo. Era diabético e não se
cuidava. Viveu pouco, para os padrões modernos, ficou abaixo da expectativa de
vida dos machos brasileiros deste fim de século. Meu consolo foi uma conversa
com ele, já acamado, poucos meses antes de morrer. “Filho, eu fiz tudo que
quis. Fui feliz. Não se preocupe comigo. Cuide de você”.
Foi um consolo, em termos. Se ele estava tranquilo para
morrer, ótimo para ele. A minha perspectiva era um pouco diferente. Eu estava
prestes a perder a minha referência, meu melhor amigo, e a minha vida
estava longe de qualquer coisa parecida com estabilidade financeira,
psicológica ou existencial. Dez anos depois, posso dizer que consegui a
estabilidade financeira. Só a financeira. Tomando como referência a frase
lapidar do meu tio, irmão mais novo do meu pai: “Problema, problema mesmo, meu
filho, é o que a gente não resolve com
dinheiro”, eu poderia dizer que estou na mesma.
Hoje eu vivo tentando comer saladas e legumes, tento não
gastar mais do que ganho, tento fumar menos, beber menos, torcer menos pelo
Corinthians, comer menos doces e gorduras, enfim, eu tento. Mas a epifania
sagrada - essa sim! - diferencia-me da
herança paterna: eu tento, quando a dor nas costas aperta, ir mais de uma vez
por semana na academia.
2. A importância do sexo na vida
Uma das grandes libertações, ao chegar próximo dos quarenta,
é perceber que o sexo é uma coisa secundária. Ou talvez, para ser mais preciso,
dar-se conta de que o sexo, ao longo dos anos, tornou-se uma coisa secundária.
Isso não significa dizer que ele tenha deixado de ser importante. Simplesmente
deixou de ser uma obrigação, um fator determinante nas decisões. O alívio de
perceber que, se ele acontecer, vai ser bom, mas se não acontecer, não será
nenhuma tragédia.
Minha impressão ao longo de toda vida foi de que o mundo dá
uma importância ao sexo que ele simplesmente não tem. Para mim é um instinto
básico como comer e dormir. Quando eu estava no primeiro colegial de Humanas do
Bandeirantes (eu sei que hoje já não tem esse nome, mas não me torrem o saco,
eu sou um velho de quase quarenta anos) nós tivemos um professor sensacional de
filosofia chamado Martini. Um dia ele deu uma aula sobre erotismo. Não é
difícil imaginar que o bando de onanistas de quinze anos da classe logo
conseguiu levar o assunto da aula para filmes pornôs. O Martini não se abalou. Nos encarou com seu
olhar sereno, sua carequinha reluzente e seus descabelados cãs
laterais e disse algo que, lamentavelmente, eu nunca vou lembrar com exatidão.
Mas era mais ou menos isso: “Reparem que o filme pornográfico tira de vocês o
melhor do sexo: a intimidade, o segredo, a descoberta”.
Eu ouvi esse pensamento, agora fazendo as contas, em 1990.
Hoje, vinte e cinco anos depois, confesso que essa aula assombrou toda a
minha vida sexual. E, obviamente, eu dou risada de pensar no quanto ele estava
certo. Dou uma risada triste, na verdade, porque a frase também explica muitas
outras questões: a repressão contra os homossexuais, a frustração de tantos
casais, enfim, explica muita coisa. Sexo é coisa para quatro paredes,
não é coisa para reza no plenário do Congresso Nacional.
3.
A importância da opinião dos outros
Voltando ao velho Bandeirantes, desta vez
quero falar de uma professora de Geografia que eu tive no primeiro colegial. Ela se
chamava Doli. Já tinha uma certa idade naquele tempo, em 1991. Outro dia soube por
uma colega que ela estava viva e em plena atividade. Fiquei muito feliz. Enfim,
a história que quero contar é a seguinte. A Doli, analisando em perspectiva,
era meio sem noção, ela nos dava, alunos de quatorze anos, a mesma aula da universidade. Não tinha livro-texto, itens na lousa, porra nenhuma. Eu
sinceramente não sei até hoje se isso,
didaticamente, era bom ou ruim. Sei que era o jeito dela, e a gente que se
virasse. Uma coisa era certa, era uma cabeça privilegiada, inteligentíssima.
Tinha uma personalidade única e ideias revolucionárias (provavelmente hoje eu
não concordaria com essas ideias, mas para um adolescente esquerdista eram maravilhosas).
Lembrei da Doli para escrever sobre a opinião dos outros porque um dia ela foi dar aula com uma sapatilha horrorosa, de couro branco, com bolinhas azuis e alaranjadas esparsas ao longo do modelo. Até para um menino adolescente, cagando e andando para moda, a sapatilha doía na alma. Mas até aí tudo bem, fazia parte da excentricidade legal da professora. Ocorreu que duas meninas na primeira carteira, talvez extasiadas pelo cansaço da última aula de sexta-feira, simplesmente não conseguiram tirar o foco da sapatilha e riam e faziam piadas compulsivamente.
Nesse momento a Doli parou a aula (e me
ganhou para sempre). Sem olhar para as duas meninas, sem se irritar e sem dar
sermão, fez um discurso sobre o quanto é bom e libertador viver sem ligar
para o que os outros pensam. Ela devia ter uns setenta anos nesse dia. Eu tinha
quinze. Só hoje, com trinta e nove, eu sei avaliar o significado do que ela
disse.
4.
Ser de esquerda. Ou ainda: Nunca pensei que
odiaria Chico Buarque
Sou um músico frustrado. Sou filho
de um cara que aos sete anos dava concertos ao piano. A professora dele brigou
com meu avô (ou ao menos reza a lenda familiar). Ela queria tirá-lo da escola
para se dedicar exclusivamente ao piano. Minha mãe não fica atrás. Uma voz
grave maravilhosa, uma intérprete digna de um teatro Bibi Ferreira. Quando os
dois se juntavam ao piano lá em casa, só saía coisa linda. Desconheço estudos
de genética que comprovem a passagem de talentos da arte de pais para filhos.
As amostras que chegam ao grande público definitivamente não ajudam. Eu sou uma
delas. Anos e anos de estudos musicais. Guitarras e pianos exemplares à
disposição. Os melhores professores. Nada resolveu. Nada saiu. “Moita.
Faltava-lhe o sopro.”, como diria o papai, citando Coelho Neto.
Os esforços educacionais dos pais da
geração da ditadura, como os meus, não incluíam apenas a educação musical,
esportiva, religiosa, espiritual, enfim, tudo aquilo que muitos deles não
tiveram em suas infâncias e, muito generosamente, é bom frisar, ansiavam em
prover aos filhos. Incluía também uma pesada carga de ”pensamento marxista”.
Coloco o termo entre aspas de propósito, para ser honesto com quem me lê,
afinal nunca li mais do que um capítulo do “Capital” e tenho horror à qualquer
tipo de sociologia de botequim. Os pais, os professores, intelectuais e todos
daquela geração criaram no Brasil o mito, um arquétipo mesmo, de que a ditadura
era o mal e a esquerda era o bem. Um filme da Disney, maniqueísta, que pode ser
tosco e medíocre nos cinemas, mas é trágico, como comprovamos hoje em dia, na
vida real.
O Bandeirantes é um
colégio, pelo que me consta, historicamente ligado ao PSDB e,
principalmente, propenso à uma ideologia liberal. A competição sempre foi
fomentada e o objetivo da escola era preparar o aluno para a vida e - por que
não?- para essa entidade bisonha e
assombrosa que chamam de “mercado”. Pois bem, nesta mesma escola eu tive um
professor de Geografia que, na sétima
série, nos fez ler dois livros: “O Capitalismo”, de Paul Singer, e “O que é o
Socialismo”, de Maurício Tratemberg. Esquecendo o fato de que um cidadão tem
que ser muito imbecil para achar que uma criança de treze anos pode entender,
na sua essência, o que é capitalismo e socialismo (sem ao menos, por exemplo,
ter estudado antes a história dos séculos XIX e XX), a pergunta que eu me faço
até hoje é: por que ele não pediu para que lêssemos “O Caminho da Servidão” do
Hayek? Ou um Von Misesinho pra temperar?
Esse professor talvez seja uma mau
exemplo, era um tosco, bem diferente dos professores do Band. Mas o padrão se
mantinha entre outros professores, maravilhosos, generosos, inteligentíssimos,
mas igualmente imbuídos da mais profunda bitolagem esquerdista. Outra pergunta
que me faço hoje (e que na verdade me aterroriza) é: se no Bandeirantes era
assim, imagine nos outros colégios de São Paulo, os que são assumidamente de
esquerda. Na verdade não preciso imaginar. Tenho dezenas de amigos que pensam
dessa maneira. Eu mesmo pensei assim por muitos anos.
Quando eu prestei Vestibular, aos
dezessete anos, não fazia a mais remota ideia do que eu queria da vida. Acabei
passando em Administração na USP e em algumas outras faculdades. Não estava
gostando de nada. Dois anos depois, prestei Relações Internacionais na PUC-SP e
achei que tinha encontrado o que gostava. Empolgado com a PUC, disse ao papai que queria largar a Administração. Não tinha nada a ver comigo. Meu pai, querido, saudoso e sábio
(mesmo sendo um esquerdista bundão como todos os de hoje, e acho que
provavelmente continuaria sendo se vivo estivesse), me disse: “Nunca abandone
essa faculdade. Você nunca sabe o que ela vai te trazer no futuro. Segura a onda.
Fica lá.”
A faculdade de Administração,
que eu odiava, me ensinou muita coisa. Me ensinou a enxergar números. Proporcionou-me todos os empregos
que eu já tive, meu sustento honesto. Essa faculdade me fez ver que eu posso
não ter talento pra música, mas me proporcionou uma poesia, irônica com
certeza, uma clareza para interpretar os discursos falsos, populistas, toscos,
desonestos. Uma clareza para dizer que tudo o que Chico Buarque diz, que não
seja arte, é tosco. Que tudo o que Luís Fernando Veríssimo faz, que não seja
crônica, é lixo. E que tudo o que Laerte faz, hoje em dia, inclusive charge, é
vômito.
Eu propus essa discussão num grupo
de amigos do Bandeirantes no WhatsApp: até que ponto se deve tolerar um artista
que afronta seus princípios éticos, morais, etc.?
Citei os acima mencionados, que não consigo nem pensar na existência, lembrei
da participação da Gal Costa no ato de desagravo ao ACM, lembrei de quando Axl
Rose lançou uma cadeira do último andar do Maksoud Plaza, mas confessei que
alguns artistas, de tanto que amo, não consigo deixar de relevar as bizarrices
éticas ou ideológicas: Gabo, Woody Allen e outros. Mas essa é uma discussão que
merece um texto exclusivo, de tão interessante.
Tenho uma teoria de botequim: acho
que o PT só está no poder até hoje, especialmente nestas últimas eleições, em
que a contagem foi tão apertada, porque o decisivo foi o voto da turma do “é
tudo a mesma merda”. De fato, se o PT é ruim, a oposição também não ajuda.
Óbvio. O diferencial, se um dia ele chegar, e segundo minha modesta sociologia
de botequim, virá da matemática e da arte.
Da arte virá se alguns artistas brasileiros um dia
perceberem que a vida não é um filme da Disney, maniqueísta, que não há bem
contra o mal, que não há luta de classes, que não há uma classe média egoísta
contra os pobres, como querem pregar alguns arautos do “de que lado você está”,
enfim, das mediocridades que os Laertes estão vomitando. E,
positivamente, não virá dos artistas e intelectuais chatos, malas sem alça,
posando de honestos, que tentam associar a revolta contra as atrocidades do
governo a meia dúzia de alucinados direitistas, pregadores de intervenções
militares e outras bizarrices, como se isso representasse a maioria da
oposição.
E a matemática... Ah! Essa será
nossa redenção!
Eu hoje sou funcionário público. Sou
analista do Banco Central. Meus colegas estão em greve. A proposta do governo
não é suficiente. Outras carreiras do serviço público estão ganhando mais do
que nós. O Banco Central está desvalorizado em relação às outras carreiras. A lista de demandas é longa e, como
sempre, “justa”.
A pergunta matemática é simples. Eu
me lembro, há alguns anos, de ver na TV a cabo o debate do Obama com o
candidato republicano. Obama prometia reformar o sistema de saúde pública. O candidato republicano perguntou: “Só há duas formas de fazer isso: ou
você aumenta impostos ou você corta gastos na área militar”. O mundo sabe qual
foi a opção. O esquerdista Obama foi obrigado, antes de ser eleito, a dizer onde faria os
cortes orçamentários que viabilizariam sua proposta. No Brasil, uma pergunta simples e direta como essa automaticamente se transformaria numa animação de monstros contra fadas encantadas, inseridas num programa eleitoral de um João Santana da vida. O massacre de que foi vítima Marina Silva nas últimas eleições, uma esquerdista corajosa o suficiente para trazer questões maduras ao debate (como a questão da independência do Banco Central), é prova incontestável.
Quando o pessoal do sindicato do Banco Central me pergunta
por que eu não aderi à greve, a minha
pergunta (nunca respondida) é muito simples: “Se nós vamos ganhar mais, quem
vai ganhar menos?”. Eu disse para o
companheiro sindicalista da CUT, que fazia protesto contra o governo Dilma na
porta do BC e exigia aumento para os técnicos: “Meu amigo, há seis meses você
estava aqui fazendo campanha para o PT. Seu panfleto chamava o ex-presidente
Armínio Fraga de terrorista (texto de Emir Sader). O governo que você ajudou a
eleger está cortando o seguro-desemprego de quem ganha salário mínimo. De onde
vai sair o dinheiro para pagar a duplicação do salário dos técnicos que você
está propondo?”.
Meus cada vez mais escassos amigos
esquerdistas me perguntam: “Onde está você, Iatã? Aquele guerreiro?”. Eu
respondo que estou aqui, como sempre.
Acredito no que sempre acreditei. Tenho os mesmos sonhos da adolescência. Mas
matemática é matemática. Tudo o que eu peço é a minha pergunta não respondida. Quem
vai pagar a conta?
5. O valor do trabalho e o sentido da vida
Trabalhar é bom e é importante. Ponto final. Mas se eu
quiser ser honesto comigo mesmo, do alto dos meus quase quarenta anos eu diria,
sem a menor sombra de dúvida: se eu pudesse, não trabalharia nunca mais. A
coisa que mais queria na vida era poder passar meus dias tomando cerveja, lendo,
escrevendo, tocando violão (mesmo sem o menor talento), fazendo poesias, enfim,
fazendo o que todo mundo acha que sabe fazer nesses tempos de redes sociais,
compartilhamentos, curtições e império da opiniãozinha.
Um aparente paradoxo filosófico que se resolveu nunca
conversa de botequim (uma verdadeira sociologia de botequim) com meu sábio
amigo Caio Macedo Carvalhal, quando eu, desempregado, com mais de trinta anos,
morando com minha mãe, reclamava, depois de tudo o que tinha trabalhado e
estudado, de ter que dar aulinhas de inglês, numa escola meia-boca, para ganhar
dez méréis. Ele me disse: “Thai (nosso apelido carinhoso, abreviação de
“Taiwan”, corruptela de “Iatã”), a man`s gotta do what a man`s gotta do”.
A frase, aparentemente “non sense”do meu amigo resume tudo
o que a vida me ensinou em quase quarenta anos e que faz ter verdadeiro horror
à qualquer política de esquerda: a ilusão de que alguém, um dia, sem
explicação, vai aparecer para resolver seus problemas. Esqueça a lógica,
esqueça a matemática, evoque qualquer ideologia generosa que te vier à mente e
tudo estará resolvido. Talvez a única coisa que não tenha mudado desde os meus
dez anos até hoje é a minha birra com filmes da Disney.
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