26.11.16

Celebridades


Essa semana conversei com meus amigos de colégio no whatsapp. Um dos assuntos foi o show do Justin Bieber. Tenho quarenta anos. Portanto, é razoável ter amigos com filhos em idade de Justin Bieber. O assunto girava desde a logística envolvida no transporte de um filho a um show deste porte com segurança até a relevância cultural de fazer isso em meio a outras opções mais esquerdetes e politicamente corretetes. Tentei me envolver o mínimo possível, mas o dia laboral estava especialmente entediante. Acabei sendo sacaneado, sofrendo bulivs. Afinal, segundo meus amigos, eu, se um dia filhos tiver, serei obrigado a levá-los aos shows dos Biebers de andador ou cadeira de rodas.
Ganhei um consolo parcial hoje à tarde, conversando com um pai em começo de carreira durante a festinha de dois anos da Sosô, filha dos meus padrinhos de casamento. Depois de contar a história do primeiro parágrafo, ele ponderou algo provavelmente muito verdadeiro: a energia para este tipo de empreitada, quando o filho é seu, tende a ser muito maior.
Decidi projetar minha carreira de pai. Imagino um dia, uma sexta-feira, eu cansado da semana de trabalho, chegando em casa com enxaqueca, como de costume, encarando um filho, ou dois, ou duas filhas, arrumadas e maquiadas, prontas para uma fila quilométrica, uma desorganização típica tupiniquim, uma multidão mijenta e adolescentes histéricas. O que – o que, meu Deus! –me faria encontrar motivação numa hora dessas?
Seria obrigado a voltar ao passado e pensar: quais celebridades influenciaram minha vida? Quais me fariam voltar ao passado e levar, feliz, mesmo no andador, uma filha ao show do Justin Bieber?

Celebridade de número 1 – Walter Casagrande Júnior

Compreendo, até acho justo, a maior parte dos brasileiros considerar o Casagrande apenas mais um bom jogador de futebol. Ele pode não ter sido um Tostão, um Ronaldo, um Romário, um Careca. Camisas nove do Corinthians muito piores ganharam títulos mais importantes. Mas nenhum jogador do Timão teve maior influência na minha decisão. Casagrande foi o cara enviado pelo Todo-Poderoso para entrar no apartamentinho do pequeno Iatã e dizer: mano, você será Curinthia para sempre.

Impossível lembrar a ordem das coisas. Só posso descrever os flashes de memória da infância, no começo dos anos oitenta. Um dia meu pai me levou ao Pacaembu pela primeira vez. Era um dia de semana, ele tinha acabado de sair do trabalho. Chegamos no segundo tempo de um Corinthians e XV de Jaú. Papai me levava pela mão em direção ao Tobogã: vamos ver o Doutor, o Zenon, o Vladimir e o Casão, meu filho!

Na mesma época, minha família tinha uma funcionária doméstica chamada Didi. Didi era perdidamente apaixonada pelo Casagrande e tinha um pôster dele bem grande no quarto, pertinho da TV branco e preto, aquele benefício trabalhista que as famílias de esquerda concediam aos criados nos bons e velhos anos oitenta. Minha memória é clara e escrachada: eu sempre saía da sala onde meu pai estava vendo os jogos do Timão na TV a cores para assistir aos jogos no quarto da Didi. Óbvio, era muito mais legal. O máximo que meu pai concedia era um “gol”, sem acento de exclamação, meio muxoxado, uma animação cansada de velho. No quarto da Didi a coisa era diferente. Minha área de serviço virava o setor laranja, mano. Na TV branco e preto nunca dava pra saber quem era Corinthians,  quem era XV de Piracicaba ou o Comercial de Ribeirão Preto. Eu só sabia quando era gol quando a Didi distinguia a cabeleira do Casão e saía surtada gritando: “É Goooooool! É Goooool do meu gato Casagrande!”. 


  Eu estava no Pacaembu no dia em que a Fiel gritou: "Volta, Casão, seu lugar é no Timão".


Celebridade de número 2 – Gene Wilder

Um dia eu estava a caminho do trabalho ouvindo a rádio CBN. No dia anterior Ronald Golias tinha morrido. Era a hora do “Liberdade de expressão”, com o Cony e o Artur Xexéo. O Cony falou uma coisa muito interessante, nunca mais esqueci. Ele explicou a diferença entre um comediante e um cômico. O comediante, dizia ele, é um ator interpretando um texto supostamente engraçado. Um cômico é engraçado sozinho, não precisa de texto. Basta ser um  Ronald Golias, um Zacarias, um Didi com peruca de Maria Bethânia. Pois é. Meu cômico favorito se foi recentemente. Gene Wilder, o Willy Wonka, da fantástica fábrica de chocolate. 


   Ronald Golias demonstra, magistralmente, a diferença entre um comediante e um cômico.


No começo dos anos oitenta não havia internet, youtube, google, nada disso. Gene Wilder entrou na minha vida através das sessões da Tarde da Globo e de um amigo do prédio que gravava o filme em VHS e me chamava para assistir ao filme na casa dele. Devo ter assistido ao “Willy Wonka and the Chocolate Factory”, da infância até hoje, por baixo, umas cinquenta vezes. Pouquíssimo filmes impactaram e influenciaram tanto a minha vida. Durante a infância, posso dizer que foi o único. 


                         O delicioso mundo misterioso do Willie Wonka de Gene Wilder

Meu fascínio pelo Willie Wonka de Gene Wilder era fruto do mistério. Aquele personagem meio louco, às vezes bonzinho, às vezes meio agressivo, com roupas excêntricas, liderando anões misteriosos de cabelo verde. Depois da morte de Gene, comecei a fuçar algumas coisas sobre ele na internet. Encontrei uma entrevista dele um “talk show” da TV americana onde ele diz que o filme não foi um sucesso comercial nos EUA. Ele explica: as crianças gostavam do meu personagem. Quem não gostava eram as mães.  


     As crianças (como eu) adoram o Willie Wonka de Gene Wilder. As mães, nem tanto... 

O tempo passou, fui ficando mais velho, passei da infância para a adolescência, e eis que Gene Wilder continuou a me ensinar as coisas mais importantes da vida. Para fazer a cena de um médico atendendo um Armênio apaixonado por uma ovelha, Woody Allen não poderia contar com nenhum ator. Nem o maior comediante do mundo bastaria. Apenas um cômico como Gene Wilder poderia fazer alguém gargalhar numa cena em que ele fica em silêncio (eu cronometrei) por mais de dez segundos. 


 
                                                Gargalhadas no silêncio: só um cômico é capaz de fazer 


Celebridade de número 3 – Neil Peart

Neil Peart é o baterista da minha banda favorita, o Rush. Meu primeiro contato com a banda foi num dia na casa da minha amiga Giana. O irmão dela tinha um vinil do álbum “Presto”, do Rush de 1989. Isso deve ter acontecido lá por 1992 ou 1993... Hoje a Giana é  uma das melhores cantoras da MPB brasileira. O rock nunca foi  muito a praia dela. Mesmo assim, nunca esqueci dela batendo as mãozinhas na cama, tentando me mostrar as conduções diferentes que Neil fazia dentro da mesma música, sua criatividade e sensibilidade.

O Rush começou em 1976, o ano em que eu nasci. Eles fizeram a turnê comemorativa de quarenta anos este ano e eu ganhei da minha esposa, no meu aniversário de quarenta anos, o DVD deste show com um bilhete: “Nenhum outro presente no mundo teria mais a sua cara do que este”. Fiquei feliz duas vezes: por ter uma esposa que me conhece tão bem e por perceber que ainda existe uma banda capaz de me fazer sentir como um adolescente doente pelas suas celebridades.

Só tem um detalhe. Neil Peart é provavelmente o único astro do rock mundial a odiar ser uma celebridade. Ele é ao autor da grande maioria das letras das músicas da banda. Em uma delas, “Limelight”, o recado fica claro: “I can`t pretend a stranger is a long-awaited friend”. Além disso, na minha modesta interpretação, Neil tenta mostrar o quanto é ridículo se achar superior aos outros pelo simples fato de estar num palco. Enfim, uma anticelebridade por excelência.

 
Living on a lighted stage

Approaches the unreal

For those who think and feel

In touch with some reality

Beyond the gilded cage



Cast in this unlikely role

Ill-equipped to act

With insufficient tact

One must put up barriers

To keep oneself intact



Living in the limelight

The universal dream

For those who wish to seem

Those who wish to be

Must put aside the alienation

Get on with the fascination

The real relation

The underlying theme



Living in a fish eye lens

Caught in the camera eye

I have no heart to lie

I can't pretend a stranger

Is a long-awaited friend



All the world's indeed a stage

And we are merely players

Performers and portrayers

Each another's audience

Outside the gilded cage



Living in the limelight

The universal dream

For those who wish to seem

Those who wish to be

Must put aside the alienation

Get on with the fascination

The real relation

The underlying theme



Living in the limelight

The universal dream

For those who wish to seem

Those who wish to be

Must put aside the alienation

Get on with the fascination

The real relation

The underlying theme

The real relation

The underlying theme




Conclusão

Se um dia filhos tiver, não faço a menor ideia do que direi sobre celebridades. Provavelmente não será algo ao meu alcance. Caso algum dia eles perguntem quais são minhas celebridades preferidas, eu talvez tente resgatar esse texto em alguma nuvem futurística. Se não for possível, deixarei estar. Eles que escutem seus corações.

18.10.16

Sobre a política, a economia e a dor

O dilema é recorrente. Eu paro na frente do Microsoft Word, encaro aquela tela branca aterrorizante, tento encontrar uma maneira de não escrever sobre política e economia. Me sinto um cronista de merda, que cronista não sabe escrever sobre os bares da vida, sobre futebol, sexo, sei lá, sobre o cinema polonês? Cada vez mais me sinto monotemático. O Brasil dos últimos treze anos me presenteou com um bode artístico. Um bode fedorento e incômodo. Tento voltar aos anos oitenta e noventa, quando os bodes artísticos passeavam fagueiros pelas vastas campinas da cultura nacional.

Tive, como menino, todas as chances de ser artista. Pais fofos, esquerdistas, contra a ditadura, liberais e coisa e tal. Tenho as melhores recordações possíveis das aulas de violão com a Paty e das aulas de piano com a Dona Marlene. Estas duas mulheres extraordinárias, se não me fizeram um grande músico, com certeza me fizeram um ser humano muito melhor. Nas aulas de piano eu decorava as músicas preferidas e tentava enganar a Dona Marlene, fingindo estar lendo a partitura. Bastava um olhar dela, de soslaio, para acabar aquela farsa. A Paty, por sua vez, sempre insistia, “vai, Iatã, não custa nada você estudar um pouco mais”.

A vida foi, pouco a pouco, me tirando da arte e me levando a um certo mundo real. Tentei, por um curto tempo, me sustentar como artista. Quando dei por mim estava no BankBoston, estagiando. Naquela época pensei (impossível não rir agora), “o Gil também trabalhou em empresa quando era jovem”.

Minha história, de lá pra cá, pode ser resumida rapidamente. Na verdade é um grande chavão. Que bonitinho... Ele queria ser artista e acabou mais um burocrata do mercado financeiro paulista.  Mudei pouco, de burocrata do mercado privado paulista para burocrata do funcionalismo público federal. É quase a mesma coisa. Só muda a pressão menor e o salário maior.

Meus amigos artistas do passado, infelizmente, com raras exceções, viraram amigos de Facebook. Minha relação com eles é efêmera, minha realidade balança entre balanços e balanços de banco.

A arte voltou à minha vida de maneira totalmente inesperada. Comecei a escrever num momento em que o normal seria estar desesperado. Estava divorciado, desempregado, sem renda e sem perspectiva profissional. Comecei a escrever para não enlouquecer. Aos poucos percebi as letras ganhando o papel das notas musicais, do estudo sofrido, anos a fio, incapazes de emocionar uma minhoca moribunda. Minhas palavras despretensiosas atingiram, finalmente, alguns corações. Minha música morreu, em paz, nas lembranças adolescentes.

Perceber a capacidade de escrever é reconfortante, mas aí surge o desafio constante da tela em branco. Meu pior pesadelo de cronista é me imaginar uma cópia barata do Arnaldo Jabor. A coluna do Jabor nos jornais e rádios parece uma vitrola riscada. Mesmo concordando como boa parte das ideias – todo mundo conhece minha ojeriza ao PT e similares –, aquilo cansa. Porra, Jabor, você não tem nada a dizer sobre o cinema polonês? Sei lá, fala sobre a Síria. Fala sobre a sua última namorada, sobre um restaurante do Leblon...

Por outro lado, a pobreza de cronistas brasileiros na atualidade pode ser vista como oportunidade. Afinal, não basta não termos mais Rubens Bragas e Nélsons Rodrigues. Precisamos aguentar o Fábio Porchat e o Gregório Duvivier resolvendo achar que são cronistas, nos “melhores jornais do país”. Outro dia estava preenchendo uma ficha qualquer num cartório e surgiu o campo “Profissão”. Quase escrevi: “Funcionário público federal e cronista”. Logo um senso profundo de autocrítica e de ridículo tomou conta de mim. “Sério, Iatã? Cronista? Você não se enxerga?”. Talvez não, mas, numa boa, se o Gregório Duvivier é cronista eu também sou.

As crônicas que escrevo também andam meio monotemáticas. Preciso ver mais filmes poloneses, preciso andar mais pelo Leblon, preciso ler mais sobre a Síria. Só consigo escrever sobre política, economia e dor. E a dor maior é tentar ser artista com bode de artista. Essa coisa Sônia Braga: “Brazil is experiencing a Coup d’état”. Essa coisa “Fora Temer” (Saco, estou imitando o Jabor de novo...). Tenho pesadelos com mulheres de cabelo azul e óculos de aro vermelho defendendo a Venezuela em fóruns de USP. Eu tenho essa coisa. É mais forte do que eu. Talvez a culpa seja do Banco Central, talvez a culpa seja dos rentistas exploradores. Talvez eu deva desculpas. Minha identidade artística se manifesta em textos como esse.

Talvez – e apenas talvez – ter a pretensão de alertar alguns artistas seja um pequena forma de arte. Quero incorporar o fôlego para encher o peito e gritar, como se estivesse numa arena de teatro amador: Vocês são ignorantes e estão errados em achar que defender este Estado gordo e corrupto é progressismo!

Minha crônica vem de um coração burocrata. Sempre tive horror à essa gente, até me tornar um deles. Não somos tão pavorosos, eu lhes asseguro. Podem chegar perto, a probabilidade de tomar uma mordida é baixa. Existe arte, existe honestidade, existem projetos no funcionalismo público federal. E, acreditem, não somos nós os únicos responsáveis pela falência da Previdência.

Minha arte pode ser tosca e impopular entre as senhoras de cabelo azul e óculos vermelhos. Pode até causar asco entre amigos queridos e, principalmente, entre artistas. Prefiro insistir – é o que me resta – na beleza das curvas de oferta e demanda, dos índices de inflação, da mensuração do endividamento das famílias. Voto no gosto de fazer algo concreto, sem ideologias. Eu prefiro ser um burocrata metido a artista do que ser um artista sem alma.

27.9.16

Lições democráticas


Algumas memórias

            Meu pai era um ótimo contador de histórias. Talvez, hoje, eu goste tanto de escrever por conta disso, deve ser uma terapia inconsciente, um remédio efêmero tentando combater o mal inexorável da saudade. Dentre as muitas deliciosas histórias estavam as de Winston Churchill e George Bernard Shaw. Muitas delas estavam devidamente incorporadas nas apostilas de inglês criadas por ele, muito utilizadas nas Escolas Lessa de Inglês, nos anos setenta, oitenta e noventa. Havia, por exemplo, a história do Churchill, enfrentando profunda impopularidade durante a segunda guerra, devido ao sofrimento terrível dos ingleses. Dizia o papai que George B. Shaw ia estrear um peça e enviou ao Primeiro-Ministro uma carta dizendo: “Here are two tickets for my first presentation. One for you and one for a friend. If you have one”. O líder maior do Reino Unido teria respondido num telegrama: “can’t come to first presentation. Please send tickets to second presentation, if you have one”.

            Tinha outra, igualmente deliciosa. O General Montgomery, líder das tropas inglesas na mesma segunda guerra, já um pouco mais bem-sucedido nas investidas contra Hitler, teria sido perguntado por um repórter: “General, qual o segredo do seu sucesso?”. “Eu não fumo, não bebo e não durmo com a mulher do próximo”, teria respondido o comandante. Lembrando da figura sempre grudada a um bom charuto de Churchill, o mesmo repórter teria perguntado a opinião do Primeiro-Ministro sobre o comentário: “Diga ao General Montgomery que eu fumo, bebo, durmo com a mulher do próximo e sou o chefe dele”.

            Muitos alunos perguntavam, “mas, professor, essa história aconteceu mesmo?”. Bons tempos, onde o Google não existia, havia mais espaço para a imaginação e o mistério. Outro dia eu brincava com um amigo sobre a impossibilidade de educar os filhos com a ameaça do “Homem-do-saco”. Os pais antigos diziam, para de fazer bagunça! Vou te deixar com o Homem-do-saco! Hoje qualquer moleque recém-alfabetizado digita “homem do saco” no tablet e descobre que ele não existe. Perdeu toda a graça.

Sei lá de onde meu pai tirava essas histórias. Tirava dos livros empoeirados e misteriosos, acumulados nas estantes enferrujadas das suas muitas escolas de inglês. Aos alunos, ele respondia com um velho ditado popular  italiano: “Si non e vero, e bene trovato”. Frase que Silvio Santos traduziria ao português como: “Se não é verdade, é muito bem sacado!”.

            Encerro esta primeira parte lembrando mais uma – suposta – frase de Churchill, igualmente citada o tempo todo pelo velho Lessa: “A democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada melhor”.  Não vou perder tempo no Google para saber se é verídica. Prefiro ficar com o ditado italiano. Importa aqui somente a ideia.

Primeiras lições de democracia

            Em 1982, eu tinha seis anos, meu pai se candidatou a vereador em São Paulo, pelo PMDB. Naquela época o PMDB não tinha tinha essa “vibe” de #foratemer que presenciamos hoje. O PMDB de 1982 era mais ou menos como o PT antes de chegar ao poder, o emissário da ética e da esperança. Meu pai se cercava com as forças “do bem”, Severo Gomes, Mario Covas, Montoro, Almino Afonso, Flavio Bierrenbach, entre outros.

            Lembro do meu pai me contando, muitos anos depois, eu já um pouco mais velho, histórias desse período. A mais impactante, sem dúvida, foi o dia em que um sujeito apareceu no comitê de campanha oferecendo uma generosa contribuição financeira em troca de votos em qualquer questão de transporte urbano. Meu tio, tesoureiro da campanha à época, perguntou, como quem não queria nada, o que aconteceria se o acordo não fosse cumprido. A resposta foi meio à Don Corleone. Dispensa comentários.

            Meu pai não foi eleito naquele ano, mesmo tendo mais de 12.000 votos. Algum tempo depois, estávamos juntos num jogo besta qualquer do Corinthians no Pacaembu. O público pagante era de 12 mil e algumas pessoas. Ele olhou em volta e disse: “Filho, dá pra acreditar que essa quantidade de pessoas votou em mim?”. Não tinha maturidade para entender a profundidade do comentário dele naquele dia, mas hoje fica bem fácil.

            Mesmo assim, nada abalava o velho Roberto Lessa. Estava sempre engajado nas eleições, sempre colocando faixas, adesivos, a festa toda. Naquela eleição para a prefeitura onde o Fernando Henrique perdeu para o Jânio, ele colocou um mosaico de adesivos montando “FH” na traseira do Passat. O carro virou uma lenda no Paraíso. Lembro de outra eleição, onde a Marta estava no segundo turno contra o Maluf, ele colocou uma faixa na escola Lessa: “Esta escola apoia Marta Suplicy para prefeita de São Paulo.”. Em resumo, fui criado por uma cara que colocava as convicções políticas muita acima do ganho financeiro. Fui “mal” educado por um cara honesto, idealista e amoroso. Se meu pai tivesse virado político, só Deus sabe o que teria saído.
           
Segundas lições de democracia

A admiração intelectual que tenho pelo meu pai deriva de uma fato muito simples. Ele era profundo conhecedor de muitos assuntos, como Teologia e Filosofia, por exemplo. E era profundo ignorante em muitos outros, como economia, matemática e ciências biológicas. Conseguiu formar dois filhos, uma médica e um sei-lá-o-que-eu-sou com algum conhecimento em economia e finanças, respeitando o que havíamos conquistado. 

Lembro bem de um dia, eu estava cursando Relação Internacionais na PUC-SP, adorando tudo, aquela doutrinação marxista típica das universidades brasileiras e, ao mesmo tempo, levava a duras penas a Administração na FEA-USP, que eu odiava, achava aquilo um coisa de burgueses medíocres, “não tinha nada a ver comigo” e coisa e tal. Meu pai esquerdista me chamou num canto e disse: “Filho, nunca desmereça o conhecimento que você está adquirindo lá. Tudo o que você aprender vai ser muito útil. Segura a onda.”. Sábio conselho. Não apenas assegurou toda minha vida profissional e o meu sustento, mas também – esse é contraponto irônico – transformou o filho num neoliberal.

Meu debate político com o papai parou numa época em que o PT e o PSDB ainda dialogavam. Ele se foi ao mesmo tempo em que Mario Covas, tão entrevado quanto ele,  ainda teve forças para apoiar Marta Suplicy na eleição contra o Maluf. Pobres idealistas. Morreram pensando coisas boas, não imaginavam multidões relaxando e gozando gostoso nas filas dos aeroportos.


Terceiras lições de democracia


            Uma amiga do meu pai recentemente comentou num meus textos, “Iatã, quarenta anos é muito cedo para perder a esperança, meu caro.”. Essa frase me martelou na cabeça por muitos dias. De fato, perder a esperança é algo muito sério. Tenho um amigo no Banco Central que me ajuda a montar um compêndio de corruptelas da língua portuguesa. Já compilamos mais de cem. “A pulga atrás da ovelha”, “Chuva de granito”, “Reator da Universidade”, entre outras. A mais pavorosa é a “A esperança é a única que morre”.

            Bom, eu perdi completamente a esperança na política. No entanto, a frase não deve ser interpretada literalmente, mas deve ser engolida na perspectiva Churchilliana descrita acima. Minha “perca” de esperança não é fruto de esforços filosóficos. Muito menos de convicções jurídicas. Estas, para mim, são sempre confusas e – como diria o pensador brasileiro e ex-Ministro da Educação Aloísio Mercadante – “Eu não sou adêvogado”. São fruto do mais puro empirismo. Minha vida brasileira me fez assim.

            Vida brasileira: a infância eu já descrevi acima. Adolescência típica de pais opositores da ditadura, doutrinado por professores marxistas na escola e depois idem ibidem na faculdade. Abençoado pelo estudo de matemática e economia, começo a questionar tudo .

            Pergunta um: como não perder a esperança quando pessoas admiradas, inspiradoras, referências intelectuais e artísticas durante toda uma vida, resolvem ignorar a corrupção mais descarada, mais abjeta, e levantam bandeiras políticas como se aquela pataquada ainda fizesse algum sentido?
           
            Pergunta dois: como comemorar a evidente morte lenta do PT nas eleições municipais se as alternativas são igualmente sofríveis, alternam entre outros esquerdistas toscos, evangélicos de meia-pataca do PRB tipo Marcelo Crivella ou conservadores decrépitos com João Dória?

            Pergunta três: como atribuir essa situação à nossa “democracia muito jovem” ao testemunhar o Brexit e o debate sofrível entre Hillary Clinton e Donald Trump ontem à  noite?

Quartas lições de democracia

Todo quarentão com eu já deve ter assistido ao filme “Karatê Kid”, um clássico da Sessão da Tarde com Ralph Macchio e Pat Morita. Devo a este filme uma grande lição de vida. Não tem nenhuma relação com Karatê, nem com disciplina. Nos anos oitenta, eu passava algumas semanas com meus primos Marcos e Daniela Lessa no prédio deles do Morumbi. Minha prima era apaixonada pelo Ralph. Um dia ela programou o videocassete para gravar o Karatê Kid 1 que passaria na sessão da tarde.  Um engano terrível ocorreu, apesar de todas as conferências e checagens exaustivas. O transistor estava ligado ao SBT, e não a Globo. A fita gravou todo o programa Silvio Santos e não o Karatê Kid. A Dani chorou muito, eu e o Marcos rimos até passar mal, mas isso não tem absolutamente nada a ver com a conclusão do texto. É apenas mais uma deliciosa memória.

A verdadeira lição veio apenas no Karatê Kid 2, quando o senhor Miyagi, já em Okinawa, leva Daniel San ao tatame sagrado e revela os dois segredos sagrados do Karatê: 1. Karatê só para defesa. 2. Volte à lição número 1. Se eu hoje tivesse um filho ou filha e precisasse explicar o que é a política, faria algo similar. Eu diria: “Lição número 1: Mestre Winston Churchill disse, a democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada melhor. Lição número 2: volte à lição número 1”.



12.9.16

We are the world


Meu oxigênio atual é minha varanda. Depois de quase uma década solteiro, encontrei um amor e com ele vieram os desafios da convivência. Para dizer a verdade, seria injusto com minha quase-esposa (vamos nos casar daqui a quarenta dias) chamar de “desafios”. Depois de quebrado meu casulo de ogro, ela amoleceu meu coração e tudo ficou mais fácil. Mesmo assim, todo cronista precisa de um casulo. Um cronista fumante precisa de um casulo a céu aberto, isolado, incapaz de incomodar as bronquites e broncas da patroa.

Quando venho aqui pro casulo, fico caçando assunto pra escrever. Vejo se alguém falou alguma coisa interessante no zap zap, no feicibuqui, folheio uns livros, enfim, fico por aí. Outro dia estava ouvindo e vendo músicas dos anos oitenta no iútubi, hábito regular e salutar. Caí na asneira de clicar no videoclipe (esse termo entrega a idade) do “We are the World”. Pra que. Fiquei umas duas semanas dormindo e acordando com essa música na cabeça. Nunca uma melodia ficou impregnada tanto tempo no meu pensamento. Cada dia eu acordava com um verso. Um dia era o Bruce Springsteen, outro dia era o Lionel Richie, outro dia era o Bob Dylan, inferno total. 


 Tanto a música martelou e fui compelido a tentar racionalizar o fenômeno.  Uma espécie de autoanálise em meio ao estresse urbano. Não demorou muito para perceber a quantidade de referências. Minha infância inteira, cheia de traumas e delícias, parecia voltar como um vinil girando reverso. Michael Jackson, vestido de preto com detalhes em dourado, me lembrou do Thriller, o primeiro álbum da minha vida. Não lembro se pedi de presente, de onde surgiu, só lembro de colocá-lo pra tocar na minha vitrola da turma da Mônica e da minha irmã tirando sarro de mim porque eu cantava “Piret, Piret”, ao invés de “Beat it, Beat it”.    



 


A lista é longa. O “yê yê yê” agudo de Cindy Lauper me teleportava ao inesquecível Goonies, de tantas sessões da tarde. O swing do Stevie Wonder e do Ray Charles me lembrava a piada politicamente incorreta e (obviamente engraçada) dizendo que a gravação da música só foi possível porque um balançava pra frente e pra trás e o outro de um lado para o outro. Outra vozes me remetiam ao “Hit Parades” da minha mãe e sua vitrola, como Paul Simon e Willie Nelson: “When you’re weary... Feeling small". São vozes de saudade dos bailinhos. Assombrações do velho Paraíso soprando de longe, mesmo eu aqui na minha varandinha distante no cerrado do Noroeste brasiliense. 

 

O videoclipe me lembrou outra coisa interessante. Na minha última aula de espanhol, meu professor Eduardo comentou como sua percepção em relação ao cantor Julio Iglesias mudou ao longo dos anos. Comentei minha experiência bastante similar de brasileiro em relação ao Rei Roberto Carlos. Concluímos juntos, após boas risadas e uma ótima conversação para melhorar meu espanhol, que os velhos acabam ficando mais tolerantes com as supostas breguices e mais atentos ao talento dos artistas. “We are the world” pode até ser meio piegas. Mas as vozes dos melhores cantores americanos, arranjados por Quincy Jones... Não tem pra ninguém.

Sentado num divã imaginário, ainda acho que o “We are the world” está mesmo perseguindo meu neoliberalismo. Onde está aquele adolescente preocupado com os pobres, mobilizado pela fome na África? Aquele cara que fazia trabalho voluntário? Meu altruísmo, meu “we are the world”, se perdeu em algum lugar entre a eleição do Lula em 2002 e o dia em que, finalmente, encontrei minha estabilidade financeira.

4.9.16

Corinthians x Palmeiras


Qualquer debate impossível no Brasil será sempre definido como Fla x Flu. O título desta crônica é uma sacanagem, uma luta inglória de paulistano tentando  mudar o céu de azul para amarelo. O céu será sempre azul. Exceto em Londres ou na Islândia, será sempre azul . É o famoso óbvio ululante. Essa provocação é mera saudade de um tempo remoto, quando o discurso  de direita era de Nelson Rodrigues, não do Kim Kataguiri.

            Qualquer paulistano convicto, militante e honesto, há de convir que o Rio é o Rio. É quase um postulado. Clássico é clássico, e coisa e tal.  Nenhuma outra cidade do mundo faria uma olimpíada bem sucedida em meio à maior crise econômica da história da República, assim como ninguém jamais fará um Flamengo x Botafogo como Garrincha.

            Nelson Rodrigues entrou na minha vida lá pelos começos dos anos 2000. Fui abençoado por um desemprego temporário, meu primeiro desemprego.  Foi a primeira vez que li peças de teatro inteiras num livro. Junto com elas, li a biografia do Ruy Castro sobre ele. Apesar de neolibreal, devo confessar que os períodos mais felizes e mais produtivos intelectualmente da minha vida foram os que estive desempregado. Vou tentar ignorar o último período para não correr o risco de entrar em contradição.

            Minha relação com a arte é estranha. Ela pula de obsessão em obsessão. Tenho as minhas “fases”. Não consigo me desinteressar por um artista antes de esgotar ao limite minha pesquisa e convivência com ele. Tive minha fase Mozart, minha fase Woody Allen, minha fase Gilberto Gil, minha fase Dominguinhos, minha fase Stanley Kubrick, mais recentemente minha fase Rush e bandas de rock da adolescência. Atualmente estou na fase The Who e Conan Doyle/Sherlock Holmes.

            Tergiversei. Voltando ao anjo pornográfico, naqueles meses de desemprego, nos “earlies 2000s”, aprendi com Nelson o verdadeiro significado da palavra “hipocrisia”. O verdadeiro intento daquela putaria toda que ele escrevia não era chocar a sociedade carioca, era jogar na cara dela, com toda força de um punho tradicional e conservador, a falsidade ululante das relações sociais.

            Infelizmente me falta conteúdo para escrever mais sobre essa época do Brasil, que acho interessantíssima. Mas quero aproveitar o gancho da hipocrisia e voltar a comentar nosso triste 2016. A discussão política recente pode ser resumida com o termo Fla x Flu. Nelson Rodrigues mal conseguia enxergar, mas fazia questão de ir ao Maracanã sofrer alucinado pelo Fluminense. Depois voltava à redação e escrevia crônicas geniais e apaixonadas. Um Fla  x Flu não tem sequer sombra de racionalidade. Não há espaço para honestidade intelectual na marcação de um pênalti. Tudo sempre estará sujeito à interpretação e ao poder político dos dirigentes.

            Reconheço o problema desta analogia quando pensamos na política. O Fla x Flu de verdade gera no máximo uma batalha pela Taça das Bolinhas. Na vida real a coisa fica bem mais feia, envolve leis, interpretações, juristas, congressistas, acordões, conchavos, quebradeiras, PMs enlouquecidos e tudo o mais. Entretando, acho a analogia válida com respeito à irracionalidade. O PT grita: “O céu é amarelo!”, a oposição grita: “O céu é verde!” e quem grita mais alto ganha. Restam meia dúzia de idiotas levantando a mão e dizendo: “Mas o céu, até ontem, não era azul?”.

            No fundo, no frigir dos ovos (ou, como diria meu amigo, “no fingir dos ovos”), estamos discutindo economia de mercado versus socialismo em pleno 2016. Custa crer no quanto é patético. Se os simpatizantes do PT e de Dilma ainda defendessem o Socialismo clássico com alguma coerência,  como faz Luiza Erundina e como fazia Plínio de Arruda Sampaio, com dignidade e um mínimo de repúdio à corrupção, o debate ainda faria algum sentido. Mas para eles basta martelar eternamente que o céu é amarelo.

            Do outro lado não há céu. Nem azul, nem nada. Eu só consigo pensar agora numa luneta. Nossa solução, se houver, deve estar anos, anos-luz de distância.  


31.8.16

Impedimentos

Escolho este título porque odeio usar palavras inglesas com similar perfeito na nossa inculta e bela. Herdei esse complexo de Policarpo Quaresma do meu pai e pretendo levá-lo ao túmulo. Antes de ganhar qualquer rótulo de ultranacionalista, xenófobo, ou qualquer direitismo similar, prefiro me prevenir. O primeiro título que me veio à mente foi: “O que aprendi com o impeachment de Collor e Dilma”. Insisti em não utilizá-lo só pra reforçar meu Policarpismo Quaresmista. Afinal de contas, eu me chamo Iatã, nome Tupi-guarani, escolhido pelo meu pai. Ele sabia das coisas e tinha orgulho de mim, pelo menos até eu me tornar um neoliberal. Infelizmente, ele não está mais aqui para tirarmos isso a limpo.

Lição número 1 – Ouça os mais velhos

Lá pelo início dos anos 90, eu era petista roxo, me achava um profundo intelectual, tinha soluções de botequim para todos, absolutamente todos os problemas nacionais. Certo dia, nessa época, eu estava no carro com uma pessoa muito querida e muito mais velha. Essa pessoa me disse: “Iatã, eu admiro suas boas intenções. Mas tenha em perspectiva a história do seu país. Eu já vi essas eleições diversas vezes. É sempre a mesma coisa. Os anos, as décadas passam, é sempre a mesma coisa”.
Meu pensamento no dia foi: “Caramba, como as pessoas velhas ficam conservadoras”. Salvo engano, naquele ano os candidatos à prefeitura de São Paulo eram Erundina, Serra e Maluf. Hoje, quase vinte e cinco anos depois, eu preciso dizer quem são os candidatos à prefeitura de São Paulo? Vamos julgar juntos meu interlocutor. É uma questão de conservadorismo ou é uma questão de perceber o óbvio ululante?

Lição número 2 – Não corte relações com amigos ou parente por causa de política.

Há quem pense como eu. Sim, o PT testou nossa paciência ao limite. Mas, convenhamos, não fomos nós (eu e a meia dúzia de gatos pingados que leem meus textos) os mais prejudicados. Nós sobreviveremos. Muito provavelmente sobreviveremos tomando uma cervejinha, comendo uma picanha e xingando muito esses comunas no Twitter.
Há quem não pense como eu. Há artistas que me encantaram, há professores que me formaram, há parentes que me cuidaram, há muita gente que eu amo e me esforço para não mandar à merda todos os dias.
A animosidade surrealista surgida nos últimos anos no Brasil só poderia ser concluída de uma forma: aquela foto patética de Dilma, Aécio e Lewandowski gargalhando no plenário do Senado. Um resumo da ópera perfeito. Somos todos perfeitos idiotas. Ou melhor, seremos sempre perfeitos idiotas enquanto não entendermos o que significa a busca pelo poder.
A melhor coisa que fiz nos últimos tempos foi pedir desculpas aos amigos excluídos do Facebook nos últimos anos. Resgatei uma paz perdida. Voltei à racionalidade. Política e racionalidade não se dão muito bem.

Lição número 3 – Estude Economia

Um dos maiores arrependimentos da minha vida foi ter escolhido, na época do vestibular, aos dezessete anos, o curso de Administração. Deveria ter feito Economia. Vou além, Economia deveria ser matéria do ensino básico. Qualquer cidadão deveria ter o direito de entender claramente para onde vão seus impostos, quem paga quanto, o orçamento público. Isso é tão importante quando saber ler e escrever, quanto ter saneamento e saúde pública. Todo mundo deveria saber exatamente como funciona a inflação, as taxas de juro, as opções de poupança e investimento. Esse assunto, da “Educação Financeira”, posso dizer porque trabalho no Banco Central, só surgiu há pouquíssimos anos.
Estudar Economia me fez perceber claramente o sentido da palavra “hipocrisia” na política. Estudar Economia não apenas nos separa dos ignorantes, por óbvio, mas principalmente nos separa dos hipócritas. Há poucas bênçãos maiores no mundo.

Lição número 4 –Lembre-se do Cosmos

Meu pai, professor de inglês, francês e espanhol durante décadas, tinha uma frase muito engraçada: “Life is too short to learn German”. Quando me lembro dele hoje, acho a vida muita curta para entender a política tupiniquim, as razões que levaram alguns norte-americanos a escolher o Trump como candidato, as razões que levaram os ingleses a dar uma botinada na União Europeia, as razões que levam alguns jovens a se explodir num ônibus, enfim, temos pouco tempo para entender muitas coisas.
Termino essas tortuosas com uma conclusão ainda mais triste. Uma conclusão quarentesca. Não esperem muita coisa, minha gente. Eu me consolo hoje com certa resignação. Temer escolheu uma equipe econômica de primeira linha. O resto, eu deixo para o resto. Sou um economista pragmático. Não tenho mais sonhos adolescentes nem perspectivas de um líder heroico na presidência da República.
Dizem que foi Keynes o autor da frase: “No longo prazo estaremos todos mortos”. Não poderia discordar mais dele na Economia, mas, na vida, talvez faça algum sentido. Não estou mais disposto a perder amigos pela política. Daqui a quarenta anos, eu estarei morto e, com certeza, não passarei sem tomar uma cerveja e dar um abraço neles todos por causa de Dilma e Aécio.

1.7.16

O valor da mediocridade


        Teoricamente, posso me dizer um cientista político. Sou bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na prática, sempre me senti como alvo da chacota do meu amigo Eduardo Bodra, vulgo Bobó, um cara sempre pronto a lembrar: eu era um estudante de Relações Espaciais de um curso técnico da zona oeste.

            Bobó era meu amigo da rua Afonso de Freitas, no Paraíso, colega do Bandeirantes. Entramos juntos na FEA-USP, ele em Economia, eu em Administração, ambos lá pelos dezoito anos. Apesar de caminharmos juntos nas primeiras alucinações universitárias – formamos uma banda de forró chamada Acauã – ele entendeu mais rápido o que era a vida, foi trabalhar para ganhar dinheiro e logo logo ganhou. Já eu fiquei perdido naquela coisa da arte, da esquerda, do sentido da vida, dos sonhos de 1968, investi mais alguns anos na música, foquei nos meus estudos de Relações Espaciais da PUC-SP, enfim, deixei a Administração e a realidade a ver navios.

            Mas o Bobó era apenas um polo do espectro.  No outro pólo estava o Daniel Teixeira, vulgo Chamber, vulgo Yellows, vulgo Cavalli, vulgo muitas coisas. O Daniel, também morador do bom e velho Paradaise, foi o entusiasta do começo da banda Acauã, o cara que ligava pra todo mundo, que agendava os ensaios e, acima de tudo,  o cara que não sabia tocar porra nenhuma, exceto um triângulo velho e enferrujado. Logo o Yellows passou do triângulo para o teclado, comprado a prestações e a custa de muito xingamento da santa Dona Carmem, mãe do Chamber. Pouco tempo depois o Cavalli já tocava triângulo, pandeiro, teclado, baixo e já frequentava aulas na Universidade Livre de Música com este que vos escreve.  Nesse tempo o Bobó já estava nas mesas de banco ganhando dinheiro.

            Mais ou menos vinte anos depois o Bobó continua ganhando dinheiro. O Daniel é um baixista de primeira linha, produtor, empresário, membro de uma das melhores bandas de forró do Brasil, a Bicho de Pé, dá entrevista na Grobo e tudo o mais. E eu, se não tivesse um talentinho pra contar essa história, já me teria jogado da ponte JK. Olho para trás, vejo o Bobó e o Chamber, e constato: fiquei no meio do caminho. Tenho um dinheirinho? Tenho. Toco um violãozinho? Toco. Sou um Salieri? Sou. Definitivamente sou. 



 
           O Bobó e o Chamber me lembram o livro mais famoso do meu parente mais famoso: o “Feijão e o sonho”, do meu tio-avô, imortal da ABL, Orígenes Lessa. Neste romance, o protagonista Carlos Lara certa hora desabafa: não é possível escrever poesia e pensar no dinheiro do feijão ao mesmo tempo, ainda mais com a esposa Maria Rosa constantemente bufando no cangote. Pensando bem, mesmo estando lá pelo meio, acho que cedi mais ao feijão. Estou mais  para Maria Rosa do que para Carlos Lara.

Estar mais para Maria Rosa é frustrante, é broxante, traz pouca emoção. Quando pensamos na vida pessoal, artística e profissional, o bode fica evidente. Agora, resgatando meu protótipo de cientista político (mesmo depois da chacota do Bobó), a ideia de um centrão talvez não seja de todo mal. Radicalizar demais, não importa o lado, geralmente não dá certo.

Nas minhas eternas e constantes críticas aos governos do PT, sempre fiz questão de frisar: a corrupção, apesar de bisonha, era o menor dos problemas. Todos os outros partidos são corruptos também, a PF e o MP estão provando todo dia o que todo mundo já sabia. Eu, por muito tempo, me iludi achando que o pior do PT era a incompetência administrativa. Bobagem. Era muito, muito pior. O legado mais nefasto do PT foi tornar o Brasil um país dividido entre o feijão e o sonho. O ideário petista (que não se confunde necessariamente com o ideário de esquerda) vende a ideia do sonho sem passar pelo feijão.

Termino minha filosofada de botequim pensando: se é importante aceitar a mediocridade na vida pessoal, na política, então, nem se fala. Nossos amigos britânicos que o digam. Pouquíssimas pessoas tem talento ou determinação para ser excelentes em alguma coisa. E estas pouquíssimas abriram mão de um mundo de coisas para ter esse troféu. A política, arte de conciliar os interesses de milhões, não tem espaço para gênios, líderes messiânicos, donos de soluções mirabolantes para todos os problemas. Quando alguém se vende assim, um Lula, ou mais recentemente, um Ciro Gomes, um Trump da vida, e os eleitores compram, o resultado é quase sempre trágico e leva anos, talvez décadas para ser consertado.

A cena final do meu filme preferido, “Amadeus”, de Milos Forman, pelo qual sou totalmente obcecado, mostra o maestro Salieri sendo empurrado em sua cadeira de rodas, velho, roto e amargo, louvando e absolvendo todos os medíocres do mundo. “I will speak for you, Father. I speak for all mediocrities in the world. I am their champion. I am their patron saint”.  Enquanto o enfermeiro o empurra lentamente, ouve-se ao fundo a música genial e inexplicável de Mozart...


 
Os medíocres fazem o  mundo andar. São a sustança da economia e a salvação da humanidade. Justamente por isso, a política deve sempre se equilibrar no meio. Governos só são minimamente úteis se fizerem as coisas andar pra frente, mesmo que devagar, no ritmo da cadeira de rodas deste maestro.

14.6.16

Quarenta mesmo

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          Quarentar é engraçado. Pode ser a metade da vida. Dá direito àquela tal crise. Na prática, talvez seja a fase da chatice. Achar-se safo suficiente para olhar as pessoas de soslaio. A vida oferece coisas e a gente desconfia. Um bom quarentão não acredita mais em nada: não acredita em políticos, manifestações populares, não acredita mais em nenhum jornalista (são todos vendidos à esquerda ou à direita). Eu me tornei um chato. Amargo, tecnocrata, meticuloso, avesso a tudo: a artistas, a intelectuais e até mesmo  a escritores.

Ser quarentão dá saudades de outros tempos, de um tempo em que o tempo passava mais devagar. Outro dia minha sobrinha Maroca disse: “Tio, lembra quando nós estávamos na Argentina e fomos ao Zoológico? Você ficou bravo comigo quando eu fiz carinho na capivara?”. A perspectiva de uma adolescente de treze anos contando uma memória de criança de nove. Aquela capivara, para mim, estava na semana passada. Uma palavra ao vento de sobrinha me transportou a outro universo. Quando eu tinha a idade dela, as interações com tios tinham um significado mágico, eram duradouras, não eram rotinas chatas de quarentões burocratas.

            Talvez a tal crise da meia-idade seja apenas isso, constatar ponteiros de relógio passando mais rápido. Este ano escrevi duas cartas para pessoas muito queridas na minha vida, minha prima Marília (que na prática é tia) e meu tio Renato. Ambos completaram 80 anos. Hoje, em relação a eles, estou no meio do caminho. Escrevi como se estivessem ali na esquina. O comentário espontâneo da Maroca me remeteu às lembranças carinhosas com todos os meus tios: Renato, Rogério, Raul, Silvia, Yader, Sarah, Paulo. Tive capivaras deliciosas com todos eles.

             Ponteiros passando mais rápido poderiam gerar ansiedade. Sorte que agora me lembrei de um livro, “Felicidade”, de Eduardo Giannetti. Li esse livro num momento bastante infeliz. Há uns dez anos. Estava com trinta e poucos. Casamento, pai e emprego perdidos numa batelada só. Naquela época a leitura do livro me deu uma perspectiva curiosa: apesar de a minha vida estar uma merda, o mundo, o Brasil e talvez a humanidade caminhassem para um lugar melhor.

            Dez anos depois, vi tudo virar do avesso. Não tenho muita certeza em relação ao mundo, mas o Brasil desceu ladeira abaixo e eu, depois de todo o perrengue, acabei melhorando. Encontrei minha paz em Brasília, achei minha Vivica, acabei num emprego público federal com estabilidade. Posso me dar ao luxo de gastar tempo preocupado com os outros. A vida de um funcionário público federal de Brasília em 2016 é uma pequena Finlândia incrustada no Haiti.

            Ao olhar para os próximos quarenta, vejo uma mistura meio desequilibrada. Uma dose cada vez menor de esperança adolescente com doses cavalares de ceticismo. Sou um burocrata frustrado com a burocracia e um artista frustrado com os artistas. Para onde correr? Eu me pego rindo à toa, imaginando se seria possível existir uma alguma arte de direita. Ou talvez um gênio de esquerda não disposto a vender a arte ao João Santana.    

            Meu quarentar é engraçado e trágico. Rio e lamento ao mesmo tempo das politicagens corretas. Rio e lamento das olimpíadas no Rio. Rio e lamento da minha impotência diante de tudo. Leio o Estadão como meu pai lia aos seus quarenta, já meio desanimado, já meio conformado. Li o Estadão hoje lamentando os mesmos PMDBs que meu pai lamentava nos anos 80 e 90.

            Vou terminar com minha esquizofrenia quarentona, meu dilema diário de burocrata versus artista. Meu sonho era ser músico, estudei por décadas, mas nada saiu. Por sorte minha banda favorita, o Rush, comemorou 40 anos de carreira no mesmo ano em que fiz 40. Eu me lembrei também do meu filme favorito, “Amadeus”, onde o maestro Salieri conta sua história de músico medíocre diante do gênio Mozart.

            Talvez meu destino, dos 40 aos 80 seja aceitar meu Salieri.  Vou contar coisas, como faço agora nesta noite fria e rara em Brasília. Quero ser um eterno pêndulo, buro... crata... ar...tista...crata....tista...buro...ar...