31.1.16

Rodas Vivas


A Roda Viva quem inventou foi Chico.       




            Imagino, sem ter muita certeza, a ideia do nome do programa de entrevistas da TV Cultura surgindo a partir do nome da música. Interessante pensar a transformação ocorrida: tanto Chico quanto o programa passaram anos, décadas, sendo unanimidades entre a intelligentsia brasileira. Hoje estão entrincheirados, cada um de lado, desconfiados e hostis. Chico cede sua música para jingle de João Santana e o Roda Viva vira um sucursal televisiva da Veja. 

            Uma pena. Cheguei à entrevista de Glória Álvarez no Roda Viva por indicação de um amigo em papos de Whatsapp. Mesmo concordando com 90% do que ela diz, teria sido muito mais interessante se os jornalistas da bancada não fossem tão ilustres desconhecidos e tão chapa branca. Eu chamaria, tranquilamente, um jornalista da Carta Capital, um intelectual da Fundação Perseu Abramo, da Unicamp, ou mesmo um jornalista da Caros Amigos. Teria tornado o programa mais interessante.

            Glória Álvarez me encantou por ser uma cientista política e eu, apesar de nunca ter seguido a carreira acadêmica ou alguma profissão relacionada, sou bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP e, pelo menos em tese, posso me considerar um cientista político. Raras vezes vi alguém expor ideias com tanta clareza como ela durante toda minha vida acadêmica. Tenho muita simpatia pela crítica ao populismo na América Latina e alguma esperança na fundação do Partido Novo no Brasil, temas que ela aborda nessa entrevista, mas prefiro não me estender muito hoje. Quero ler mais sobre o assunto, e, principalmente, ver o que o Partido Novo fará na prática quando e se eleger os primeiros representantes. Em todo caso, acho legal colocar a entrevista aqui para quem se interessar.





Foi meio chocante (eu estou numa sessão madrugadora de YouYube enquanto escrevo), ver na sequência a entrevista com o Paulo Francis no "mesmo" Roda Viva. Supostamente, o nível intelectual do entrevistado e dos entrevistadores era muito maior. O próprio âncora, Matinas Suzuki Jr., anuncia a bancada com a seguinte frase: "Hoje temos uma bancada de entrevistadores chiquíssima". Vejam só: lá estavam figuras como Décio Pignatari, Carlos Heitor Cony, Alberto Dines, Lucas Mendes e Danuza Leão.



Paulo Francis virou uma espécie de ídolo automático da minha geração, os filhos de pais anti-ditadura e empurrados ao marxismo não apenas em casa, mas principalmente na escola e na Universidade. Apesar disso, confesso um certo bode dele e de todos esses entrevistadores do Roda Viva de 1994. Demorei a assumir esse bode. Bodes são fedidos, dão coice, fazem barulho, mas às vezes é difícil assumir que eles são incômodos quando fomos criados para acreditar que eles são legais.

Assisti não apenas todo o Roda Viva com o Paulo Francis em 1994, mas também o de 1996 e vários outros vídeos no YouTube. Tive por ele a mesma sensação que tenho hoje pela maioria dos meus professores da escola e da Universidade: muita regurgitação intelectual e pouco conteúdo.

Sabe aquela sensação que você tem na faculdade quando pega um texto de um professor, considerado uma sumidade intelectual, e não consegue entender nem o primeiro parágrafo? Eu passei por essa experiência algumas vezes. Pensei: "Não é possível que eu seja tão burro, vou pegar um dicionário, ver a definição de cada palavra e ler de novo". Aí eu via que continuava não entendendo. E passei a ver que, quando você pega um texto clássico, daqueles que transcendem o tempo, com algum esforço, sempre dá pra entender.

No mesmo ano em que Paulo Francis deu essa entrevista para o Roda Viva (1994), eu tinha acabado de entrar na faculdade e devorava os jornais do dia. Eu lia alguns artigos da Ilustrada no ônibus, o famigerado Butantã-USP, e me perguntava: "Nossa! Será que algum dia em terei nível intelectual para entender essas matérias?". O tempo passou e eu percebi o quanto esse pensamento era ridículo. A própria Folha percebeu o mesmo ridículo alguns anos depois e passou a separar, aos domingos, a Folha "Ilustrada" da Folha "Ilustríssima", como se assumisse o comportamento patético de publicar coisas que nenhum ser humano é capaz de entender.

Devo essa percepção à minha querida mãe, Maria Lessa, que sempre tinha um livro do Rubem Alves à mão para me emprestar. Eu devo ao Rubem Alves a constatação de que não é preciso escrever difícil para discutir questões filosóficas profundas. O Roda Viva com Paulo Francis, apesar de mais credenciado, passa aquela sensação de que você nunca leu o suficiente para entender a profundidade do que eles estão discutindo. Já faz tempo que não tenho mais saco pra isso. Prefiro as Glórias Alvarez da vida, mesmo em entrevistas chapa branca. Para mim inteligente é quem sabe se comunicar com qualquer um.

23.1.16

Sonho de um videogame à brasileira

            Desde muito pequeno fui louco por videogames. Nos anos oitenta, cheguei a sonhar, mais de uma vez, com a chegada do Atari. Sonhava com um Natal nevado, norte-americano, um pacote perfeito e laceado com fino papel de presente. Não recebi assim. Papai era um cara sincero, pragmático e avesso às promoções de Casas Bahia e chantagens emocionais. Nunca ganhei presente nas datas certas, sempre ganhei quando o velho Lessa tinha dinheiro ou, provavelmente, quando ele simplesmente dava um jeito.

            Sei que de arranjo em arranjo tive tudo o que quis. Nunca fomos ricaços, mas não posso reclamar de nada. O Atari um dia chegou, chegou também a bicicleta Caloi Cross, chegaram os computadores de Nerd dos anos 90 (o TK-95, o Hotbit), papai pode descansar tranquilo em bom lugar, um querido, sempre se esfalfou para dar tudo o que esse mimado cronista poderia querer.
           
            Ser louco por videogames sempre foi algo a ser escondido. Ser Nerd era meio bizarro. O “Big Bang Theory” estava longe de existir. Os anos 80 e 90 foram difíceis para nós, podem acreditar. Registradas essas reminiscências pequeno burguesas, peço licença para falar sobre o impacto dessa ignorância sobre a economia brasileira.

            A economia brasileira continua, em pleno 2016, baseada na produção e exportação de produtos agrícolas e industriais de qualidade duvidosa, dependentes de um câmbio e taxas Selic favoráveis. Não vou me estender no assunto por absoluta falta de conhecimento sobre o tema. Mas, só como exercício de pensamento, eu proponho: quantos videogames nós produzimos nos últimos anos? Quantos filmes? (Ah, desculpem! “Os Dez Mandamentos” deve bombar esse ano!) Quantos aplicativos de celular? Quantas soluções de eficiência empresarial?

            Durante as últimas quatro eleições, quando eu tentava discutir com alguém que vota no PT, a discussão sempre acabava (quando travada com pessoas honestas) num impasse do tipo: “Mas os outros partidos também são corruptos, pelo menos o PT garantiu a diminuição da pobreza”. O meu argumento, sempre esquecido ao vento era: a corrupção é, de longe, o menor dos problemas do PT. O problema mais sério é não enxergar o horizonte, saber que  exportar videogames, por exemplo, seria mais interessante do que exportar soja.  Esse é um entre 18.764 argumentos que eu poderia dar na mesma linha.

            Lá pelo anos de 2004 e 2005, tive a oportunidade de trabalhar com meu amigo Ricardo Mendes numa consultoria de assuntos internacionais. Nesse período, fizemos alguns trabalhos sobre o setor de serviços. Se pararmos pra pensar sobre a importância do setor de serviços na economia mundial, em comparação à importância da indústria e da agricultura, não é necessário muito esforço para perceber que ele deveria ter sido prioritário.

            Minha mãe e minha irmã sempre criticaram minha devoção ao videogame com aqueles argumentos típicos de quem jamais encostou num joystick. Perda de tempo, coisa inútil, como uma pessoa inteligente como você pode passar tanto tempo dedicado a isso? Eu respondi defensivamente com um desafio: “Se vocês me explicarem qual é a diferença, em termos de perda de tempo e utilidade, entre passar três horas jogando videogame e passar três horas vendo novela, vendo um filme no cinema, ou batendo papo no bar com os amigos, eu desligo o PlayStation agora”. Elas nunca me responderam, mas eu vou ser chato a ponto de tentar.

            Deve ter sido lá por 2011. A revista “Economist” fez uma matéria especial, de mais de dez páginas, sobre a indústria de videogames no mundo. Vários fatos interessantes. Naquele ano, os jogos de maior sucesso haviam gerado mais receita, de longe, do que os mais bem sucedidos filmes de Hollywood. Também provaram estatisticamente a bobagem do senso comum de achar que videogame é coisa de criança (provavelmente estúpida) do sexo masculino. A quantidade de mulheres consumidoras de games era enorme, assim como os homens entre 30 e 40 anos como eu, muito precisamente apelidados na matéria de “The Atari Generation”.

            Outro equívoco típico de quem não vive nesse mundinho é achar que os jogos de hoje são limitados e baseados na velocidade de reação, dos reflexos, como antigamente. As mães do mundo continuam achando que estamos desviando a esmo o avião do River Raid ou pulando alucinadamente como Mário Bros no tempo do 2D. Não é de hoje que os jogos são muito mais complexos e interessantes. Envolvem um nível alto de raciocínio e pensamento estratégico. Não existe mais a ideia de passar de fase como antigamente. Os jogos são um mundo virtual. Hoje passar de fase é um mundo aberto de possibilidades, um desafio permanente para a criatividade.

            Terminar um jogo hoje também é bastante diferente. Não se resume ao Mário Bros pulando em cima do dragão e salvando a princesinha loira. Além de alguns meses de dedicação e esforço, o final de um jogo de videogame quase sempre vem acompanhado de alguns minutos, muitos minutos na verdade, de créditos.  Diretores de arte, desenhistas, técnicos de voz, diversos tipos de programadores, atores, músicos, enfim, uma infinidade de profissionais cujos nomes de profissão o Brasil provavelmente nem sabe classificar na RAIS.

Quem é alucinado por games como eu, vê esses créditos e pensa: “Vocês são foda. Eu faço questão de comprar o jogo original para garantir que vocês continuem empregados”. Infelizmente estão todos empregados no Canadá, na Índia, na China, no Japão, na Nova Zelândia. Mas se você faz parte da maioria da população que não está nem aí pra videogames, pelo menos tente pensar que, se houvesse uma indústria como essa no Brasil, teríamos menos gente cortando cana, desmatando floresta e plantando soja. Ou, mais provável, não teríamos 1.500.000 pessoas a menos com carteira assinada em 2016.

“O Itamaraty apostou numa política de informática absolutamente estúpida. O Brasil é contra a inclusão de serviços no GATS, ignorando que, fatalmente, os serviços se equipararão aos bens comerciais e talvez os superarão como percentagem do comércio internacional, de modo que a gente tem é que ingressar no disciplinamento dessas atividades como parte do contexto internacional. Se não, os serviços acabam sendo regulamentados sem nós. Então, fizemos todas as apostas erradas”. 

Roberto Campos - Programa Roda Viva - TV Cultura - 1991 (25 anos antes desta crônica)

           

15.1.16

Brasília - Quintas Impressões


         Quando uma série de crônicas sobre uma mudança de cidade chega à sua quinta edição, está na hora de parar de falar sobre descobertas e começar a falar sobre a alma da cidade. Hoje sou um paulistano adaptado a Brasília. Já descobri duas pizzarias aceitáveis, um restaurante japonês digno de estar na Liberdade e uma padaria que, apesar de não servir uma média com pão na chapa perfeita em menos de dois minutos, ao menos tem a dignidade de servir um “pão de sal”- é como chamam o pão francês por aqui – minimamente decente. 

            Sempre me cobrei, e ainda me cobro, uma leitura mais apurada, uma pesquisa séria, sobre Niemeyer e Lúcio Costa. Nunca entendi direito essa história do Niemeyer ser comunista. Brasília é a cidade mais elitista possível. O plano piloto faz total juz ao apelido de “Ilha da Fantasia”. Imagine você, leitor de qualquer outra cidade, o que é uma cidade inteira sem calçada. Mais de cinco anos depois da mudança, continua sendo algo surrealista para mim.

            Recentemente, há menos de três meses, eu e minha esposa nos mudamos para o Noroeste, o bairro novo e ecológico de Brasília. O pessoal desmatou alguns hectares de cerrado, expulsou um ou outro índio maluco, mas o bairro é ecológico. Tem até vaga especial para carros com baixa emissão de carbono. Para chegar aqui, vindo do centro de Brasília, onde nós trabalhamos, é preciso pegar o famoso “Eixão”, aquela avenidona que singra as asas do avião. Cobre toda a asa norte e a asa sul.

            Passar todo o dia por essa avenida é como jogar videogame do Atari na vida real. Vira e mexe aparece um sapo, um space invader, um pitfall. Supostamente a velocidade máxima da via é 80 Km/H. Mas experimente trafegar nessa velocidade e veja as emoções que o esperam. Tem também um bônus: um ciclista na contramão ou um carro encostando pra conversar com uma mulher de vida fácil. Tem de tudo. Tudo sem acostamento, sem calçadas e sem passarelas.

            Alguém poderia pensar que Brasília é uma cidade onde, pelo menos, se aprende com os erros. Uma pena. Além da política econômica, onde nosso querido Guido seguiu a cartilha do Delfim, outros erros insistem em nos assombrar. Aqui no Noroeste, bairro novo e planejado, também não existem calçadas. Nossa faxineira espera o ônibus em cima do entulho e Deus sabe como chega aqui. O planejamento urbano comunista fez escola. Esses são os problemas de quem vive aqui na ilha da fantasia e – é sempre bom lembrar – de quem é obrigado a vir à ilha da fantasia todos os dias para trabalhar e sobreviver.

            Brasília também é uma ilha da fantasia fiscal. Não importa a inflação de dois dígitos, muito além da meta, não importa o déficit das contas públicas, não importa a recessão: eu, funcionário público federal concursado, tenho o meu aumento de salário garantido pelos próximos quatro anos. Agradeço imensamente a você, que votou nesse governo. Terei um pouco mais de dinheiro para pagar a conta de luz, que aumentou 51%, e a gasolina, que aumentou sei lá quanto. Eu brinco com meus amigos esquerdistas que, se eu votasse pensando só em mim, teria votado na Dilma tranquilamente. Eu ainda opto por ter um mínimo de vergonha na cara. Minha faxineira, que espera o ônibus em cima do entulho, não vai ter a opção de rir a respeito e fazer ironia num blog.

            Quando eu passo pela ponte que dá vista à Esplanada dos Ministérios, num dia de sol, 90 por cento dos dias de Brasília, vejo uma coisa absolutamente linda, uma obra de arte inexplicável, emocionante , feita por um artista como Oscar Niemeyer. Infelizmente ele, e Chico, e tantos outros artistas geniais brasileiros não tiveram a infelicidade de ser um técnico burocrata do governo federal como eu e ter a dimensão da quantidade de merda que se faz dentro daqueles prédios.

            Se ilude quem acha que Brasília é um Olimpo isolado da realidade dos reles mortais. Brasília é a cara escarrada do Brasil, sem tirar nem pôr, com todas as suas qualidades e defeitos. A ditadura militar e a dinastia petista de 16 anos criaram exatamente a mesma coisa por aqui: uma burocracia enriquecida – da qual eu infelizmente hoje faço parte – cercada de miséria por todos os lados.

            Lamentavelmente, eu trouxe a tecnologia da elite branca paulistana para Brasília. Mudei-me para um condomínio com mais porteiros, mais garagens, mais seguranças, mais elevadores e mais senhas na porta de casa. Peço desculpas sinceras. Continuamos aqui, sonhando com as portas abertas de Niemeyer, mas dormindo com portas trancadas – como diria Caetano, exaltando os índios - pela mais avançada da mais avançada das tecnologias.