Quando
uma série de crônicas sobre uma mudança de cidade chega à sua quinta edição,
está na hora de parar de falar sobre descobertas e começar a falar sobre a alma
da cidade. Hoje sou um paulistano adaptado a Brasília. Já descobri duas
pizzarias aceitáveis, um restaurante japonês digno de estar na Liberdade e uma
padaria que, apesar de não servir uma média com pão na chapa perfeita em menos
de dois minutos, ao menos tem a dignidade de servir um “pão de sal”- é como
chamam o pão francês por aqui – minimamente decente.
Sempre me cobrei, e ainda me cobro,
uma leitura mais apurada, uma pesquisa séria, sobre Niemeyer e Lúcio Costa.
Nunca entendi direito essa história do Niemeyer ser comunista. Brasília é a
cidade mais elitista possível. O plano piloto faz total juz ao apelido de “Ilha
da Fantasia”. Imagine você, leitor de qualquer outra cidade, o que é uma cidade
inteira sem calçada. Mais de cinco anos depois da mudança, continua sendo algo
surrealista para mim.
Recentemente, há menos de três meses,
eu e minha esposa nos mudamos para o Noroeste, o bairro novo e ecológico de
Brasília. O pessoal desmatou alguns hectares de cerrado, expulsou um ou outro
índio maluco, mas o bairro é ecológico. Tem até vaga especial para carros com
baixa emissão de carbono. Para chegar aqui, vindo do centro de Brasília, onde
nós trabalhamos, é preciso pegar o famoso “Eixão”, aquela avenidona que singra
as asas do avião. Cobre toda a asa norte e a asa sul.
Passar todo o dia por essa avenida é
como jogar videogame do Atari na vida real. Vira e mexe aparece um sapo, um space
invader, um pitfall. Supostamente a velocidade máxima da via é 80 Km/H. Mas
experimente trafegar nessa velocidade e veja as emoções que o esperam. Tem
também um bônus: um ciclista na contramão ou um carro encostando pra conversar
com uma mulher de vida fácil. Tem de tudo. Tudo sem acostamento, sem calçadas e
sem passarelas.
Alguém poderia pensar que Brasília é
uma cidade onde, pelo menos, se aprende com os erros. Uma pena. Além da
política econômica, onde nosso querido Guido seguiu a cartilha do Delfim,
outros erros insistem em nos assombrar. Aqui no Noroeste, bairro novo e
planejado, também não existem calçadas. Nossa faxineira espera o ônibus em cima
do entulho e Deus sabe como chega aqui. O planejamento urbano comunista fez
escola. Esses são os problemas de quem vive aqui na ilha da fantasia e – é
sempre bom lembrar – de quem é obrigado a vir à ilha da fantasia todos os dias
para trabalhar e sobreviver.
Brasília também é uma ilha da
fantasia fiscal. Não importa a inflação de dois dígitos, muito além da meta,
não importa o déficit das contas públicas, não importa a recessão: eu,
funcionário público federal concursado, tenho o meu aumento de salário
garantido pelos próximos quatro anos. Agradeço imensamente a você, que votou
nesse governo. Terei um pouco mais de dinheiro para pagar a conta de luz, que
aumentou 51%, e a gasolina, que aumentou sei lá quanto. Eu brinco com meus
amigos esquerdistas que, se eu votasse pensando só em mim, teria votado na
Dilma tranquilamente. Eu ainda opto por ter um mínimo de vergonha na cara.
Minha faxineira, que espera o ônibus em cima do entulho, não vai ter a opção de
rir a respeito e fazer ironia num blog.
Quando eu passo pela ponte que dá
vista à Esplanada dos Ministérios, num dia de sol, 90 por cento dos dias de
Brasília, vejo uma coisa absolutamente linda, uma obra de arte inexplicável,
emocionante , feita por um artista como Oscar Niemeyer. Infelizmente ele, e
Chico, e tantos outros artistas geniais brasileiros não tiveram a infelicidade
de ser um técnico burocrata do governo federal como eu e ter a dimensão da
quantidade de merda que se faz dentro daqueles prédios.
Se ilude quem acha que Brasília é um
Olimpo isolado da realidade dos reles mortais. Brasília é a cara escarrada do
Brasil, sem tirar nem pôr, com todas as suas qualidades e defeitos. A ditadura
militar e a dinastia petista de 16 anos criaram exatamente a mesma coisa por
aqui: uma burocracia enriquecida – da qual eu infelizmente hoje faço parte – cercada de miséria por todos os lados.
Lamentavelmente, eu trouxe a
tecnologia da elite branca paulistana para Brasília. Mudei-me para um
condomínio com mais porteiros, mais garagens, mais seguranças, mais elevadores
e mais senhas na porta de casa. Peço desculpas sinceras. Continuamos aqui,
sonhando com as portas abertas de Niemeyer, mas dormindo com portas trancadas –
como diria Caetano, exaltando os índios - pela mais avançada da mais avançada
das tecnologias.
Um comentário:
Muito bom, meu caro Thailãn. Um dia desses preciso tomar vergonha na cara e conhecer a capital do meu país de origem. Agora só falta entender por que caralhos a gasosa segue subindo enquanto o petróleo segue despencando, prãfesssárrr!
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