O Corinthians estreou seu novo estádio no dia 18 de maio de 2014, perdendo para o Figueirense, então lanterna do campeonato brasileiro, por 1 x 0. O meia Giovanni Augusto, autor do tento, provavelmente teria a mangueira no barril de chopp mais sublinhada pela história se a Copa do Mundo no Brasil não fosse tão melancólica e se o Corinthians não desenterrasse o sapo do estádio de maneira tão convincente quanto no campeonato brasileiro do ano seguinte.
Confesso que não foi fácil para mim
aceitar o Itaquerão. Como todo corinthiano, sempre fui simpático à ideia de um
estádio próprio, talvez mais pela encheção de saco de são paulinos e
palmeirenses do que pela carência em si. Estávamos confortáveis no Pacaembú. Havia
cheiro e rotina de casa. A calabresa das tias, o pedido dos manos para inteirar
um real do ingresso, o sacrifício de subir a ladeira na volta, o prêmio de
comer o beirute incomível sozinho do Toninho Freitas lá em cima, tudo isso
sempre foi parte da rotina da nossa casa.
O Itaquerão nos obrigou a aceitar a influência
do Lula sobre a construtora do estádio, aceitar o papel do deputado André
Sanchez, a contratação do filho do Lula para trabalhar no time, entre tantas outras picaretagens. Optar por
viver sem concessões políticas e éticas é primazia dos solitários, chatos e
infelizes. Costuma ser minha opção diária. Só não resisti ao Poderoso Timão.
Virei homem de malandra, apanhei e segui apoiando. Foi uma marchinha de
carnaval do Silvio Santos: fiz transplante e botaram outro coração corinthiano.
Quando mudei para Brasília, em 2010,
a ficha da vida de um paulistano do planalto central demorou a cair. Meu amigo
Josino, ainda habitante destas terras quando aqui cheguei, dizia: “Nunca se
esqueça, meu querido, você está vivendo no sertão de Goiás”. Passei algumas
semanas percorrendo os bares do bairro achando que veria um jogo do
Corinthians. O máximo que consegui foi descobrir que torcedores do Botafogo de
fato existem. A ficha só caiu mesmo quando outro amigo, colega do BC em
Brasília, o tricolor paulista Lucas Item Teixeira, perscrutador jedi da
internet, descobriu uma pesquisa séria comprovando que 50% dos habitantes do DF
eram flamenguistas, 25% vascaínos, 5% corinthianos, 5% são paulinos e o resto
era o resto. Nesse dia percebi que seria obrigado a pagar R$150 de TV a cabo
por mês para ter o direito de pagar mais R$80 e adquirir o pay-per-view dos jogos do glorioso alvinegro de Parque São Jorge.
Ano passado, diante da esplendorosa
campanha do Timão no campeonato brasileiro, minhas convicções éticas e morais
foram arrefecendo e eu queria estar em Itaquera, como bom retardado, estar no
bando de loucos, comprar uma camisa pela internet por um preço ridículo,
eu me perdi. Confesso, me perdi. Comprei
ingresso para o Corinthians x Flamengo. Combinei com meus antigos vizinhos do
Ajaccio, o velho prédio onde nasci e me criei. Fomos de carro, pegando toda a
radial leste. Ir de carro é muito mais legal que ir de metrô. Dá para
contemplar quilômetros e quilômetros de miséria até chegar ao templo do
Itaquerão. Aos poucos vai se vendo as primeiras estruturas. O concreto
paralelo, o povo chegando de metrô, as pontes, os carros estacionando com uma
desorganização muito menor do que a dos tempos do Pacaembú. Senti uma mistura de Barcelona com Juventus da
rua Javari. Senti também uma pontada de autocrítica. Talvez por termos passado,
no caminho, pelo templo de Salomão da Universal. O mesmo monumento de concreto
que eu, intelectual, racional, neoliberal, tanto desprezo e cujos frequentadores
critico.
Escrevi cinco parágrafos e acabei
não escrevendo nada sobre a ideia original deste texto. Minha ideia surgiu do
remorso de gostar do Itaquerão sem ter dado um tratamento digno, um epitáfio,
uma eulogia alvinegra ao estádio Paulo Machado de Carvalho. Não seria digno da
minha parte. Jamais me perdoaria se os parágrafos seguintes não existissem.
O Pacaembú entrou na minha vida numa noite como hoje. Um
dia de semana besta. Dia de um joguinho de importância questionável no Campeonato
Paulista. Eu era uma criança, não estudara história, não conhecia a humanidade
e, principalmente, não tinha a mais remota ideia do que seriam os celulares, os
tablets e a internet. A ignorância é a melhor parceira da surpresa, do êxtase,
dos traumas. Estava nessa noite de 1982 a caminho de um improvável Corinthians
x XV de Jaú no estádio Paulo Machado de Carvalho.
Meu pai era bastante parecido com o
Corinthians dos anos 80: popular, carismático, desorganizado, raçudo, corajoso,
estabanado e absolutamente avesso ao conceito de planejamento de médio (quiçá
longo) prazo. Um pai normal (e
provavelmente torcedor do São Paulo) teria comprado ingressos com semanas de
antecedência, nas cadeiras cativas, as mais seguras e distantes do povão. O meu
era mais sem noção. Fomos num dia nada a ver. Só havia ingressos na Geral, naquele tempo ainda era o
“Tobogã”.
Talvez seja assim com qualquer ser
humano. Tenho pouquíssimas memórias da minha tenra infância, apenas flashes de
coisas realmente marcantes. Esse dia no Pacaembú com meu pai é uma delas. Lembro
hoje, quase trinta e cinco anos depois, com uma riqueza de detalhes
impressionante. Papai de mãos dadas comigo, caminhando rumo àquele mar verde,
gigante, gritando alto, habitado por Socrátes, Casagrande, Solito, Vladimir,
Zenon, Ataliba e as pobres vítimas do XV de Jaú.
Desde esse dia o Pacaembú me deu
inúmeras alegrias e tristezas. Vi muitos gols com as curvas surrealistas do
Marcelinho Carioca, gols do Neto, Viola, vi o Palmeiras da Parmalat nos dando
baile, vi o estádio inteiro gritando “Volta, Casão, seu lugar é no Timão”, até
gol do Ronaldo Fenômeno eu vi por lá. Vi muitos jogos horrorosos. Ouvi muitas
vezes o clássico narrador, quase
filósofo, do estádio proclamar: “Todo atleta merece respeito. Se não
quiser aplaudir, silencie-se”. (Quem adivinharia que o Facebook roubaria a ideia anos depois.)
Estamos em 2016. Em breve farei 40
anos. Acho que estou fadado a ser um corinthiano viúvo do Pacaembú. Se um dia
tiver filhos (ou filhas), vou levá-los ao Itaquerão e vou postar todas as fotos,
todo pimpão. Alguns amigos meus já o fizeram, e confesso que tive uma inveja
boa. Uma coisa, no entanto, é certa. Antes de pisar em Itaquera, vão ouvir uma
centena de histórias chatas. Histórias de craques vendidos para a China. Histórias
de craques que ganharam a Libertadores num dos dias mais lindos da história do
Pacaembú. Histórias do filho de um
Corinthiano que ouvia horas e horas de descrições repetidas dos gols de
Baltazar e de Luisinho, o Pequeno Polegar. Histórias de um corinthiano patético
e apaixonado que escreve crônicas sobre um estádio às 3:11 da manhã.
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