1.7.16

O valor da mediocridade


        Teoricamente, posso me dizer um cientista político. Sou bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na prática, sempre me senti como alvo da chacota do meu amigo Eduardo Bodra, vulgo Bobó, um cara sempre pronto a lembrar: eu era um estudante de Relações Espaciais de um curso técnico da zona oeste.

            Bobó era meu amigo da rua Afonso de Freitas, no Paraíso, colega do Bandeirantes. Entramos juntos na FEA-USP, ele em Economia, eu em Administração, ambos lá pelos dezoito anos. Apesar de caminharmos juntos nas primeiras alucinações universitárias – formamos uma banda de forró chamada Acauã – ele entendeu mais rápido o que era a vida, foi trabalhar para ganhar dinheiro e logo logo ganhou. Já eu fiquei perdido naquela coisa da arte, da esquerda, do sentido da vida, dos sonhos de 1968, investi mais alguns anos na música, foquei nos meus estudos de Relações Espaciais da PUC-SP, enfim, deixei a Administração e a realidade a ver navios.

            Mas o Bobó era apenas um polo do espectro.  No outro pólo estava o Daniel Teixeira, vulgo Chamber, vulgo Yellows, vulgo Cavalli, vulgo muitas coisas. O Daniel, também morador do bom e velho Paradaise, foi o entusiasta do começo da banda Acauã, o cara que ligava pra todo mundo, que agendava os ensaios e, acima de tudo,  o cara que não sabia tocar porra nenhuma, exceto um triângulo velho e enferrujado. Logo o Yellows passou do triângulo para o teclado, comprado a prestações e a custa de muito xingamento da santa Dona Carmem, mãe do Chamber. Pouco tempo depois o Cavalli já tocava triângulo, pandeiro, teclado, baixo e já frequentava aulas na Universidade Livre de Música com este que vos escreve.  Nesse tempo o Bobó já estava nas mesas de banco ganhando dinheiro.

            Mais ou menos vinte anos depois o Bobó continua ganhando dinheiro. O Daniel é um baixista de primeira linha, produtor, empresário, membro de uma das melhores bandas de forró do Brasil, a Bicho de Pé, dá entrevista na Grobo e tudo o mais. E eu, se não tivesse um talentinho pra contar essa história, já me teria jogado da ponte JK. Olho para trás, vejo o Bobó e o Chamber, e constato: fiquei no meio do caminho. Tenho um dinheirinho? Tenho. Toco um violãozinho? Toco. Sou um Salieri? Sou. Definitivamente sou. 



 
           O Bobó e o Chamber me lembram o livro mais famoso do meu parente mais famoso: o “Feijão e o sonho”, do meu tio-avô, imortal da ABL, Orígenes Lessa. Neste romance, o protagonista Carlos Lara certa hora desabafa: não é possível escrever poesia e pensar no dinheiro do feijão ao mesmo tempo, ainda mais com a esposa Maria Rosa constantemente bufando no cangote. Pensando bem, mesmo estando lá pelo meio, acho que cedi mais ao feijão. Estou mais  para Maria Rosa do que para Carlos Lara.

Estar mais para Maria Rosa é frustrante, é broxante, traz pouca emoção. Quando pensamos na vida pessoal, artística e profissional, o bode fica evidente. Agora, resgatando meu protótipo de cientista político (mesmo depois da chacota do Bobó), a ideia de um centrão talvez não seja de todo mal. Radicalizar demais, não importa o lado, geralmente não dá certo.

Nas minhas eternas e constantes críticas aos governos do PT, sempre fiz questão de frisar: a corrupção, apesar de bisonha, era o menor dos problemas. Todos os outros partidos são corruptos também, a PF e o MP estão provando todo dia o que todo mundo já sabia. Eu, por muito tempo, me iludi achando que o pior do PT era a incompetência administrativa. Bobagem. Era muito, muito pior. O legado mais nefasto do PT foi tornar o Brasil um país dividido entre o feijão e o sonho. O ideário petista (que não se confunde necessariamente com o ideário de esquerda) vende a ideia do sonho sem passar pelo feijão.

Termino minha filosofada de botequim pensando: se é importante aceitar a mediocridade na vida pessoal, na política, então, nem se fala. Nossos amigos britânicos que o digam. Pouquíssimas pessoas tem talento ou determinação para ser excelentes em alguma coisa. E estas pouquíssimas abriram mão de um mundo de coisas para ter esse troféu. A política, arte de conciliar os interesses de milhões, não tem espaço para gênios, líderes messiânicos, donos de soluções mirabolantes para todos os problemas. Quando alguém se vende assim, um Lula, ou mais recentemente, um Ciro Gomes, um Trump da vida, e os eleitores compram, o resultado é quase sempre trágico e leva anos, talvez décadas para ser consertado.

A cena final do meu filme preferido, “Amadeus”, de Milos Forman, pelo qual sou totalmente obcecado, mostra o maestro Salieri sendo empurrado em sua cadeira de rodas, velho, roto e amargo, louvando e absolvendo todos os medíocres do mundo. “I will speak for you, Father. I speak for all mediocrities in the world. I am their champion. I am their patron saint”.  Enquanto o enfermeiro o empurra lentamente, ouve-se ao fundo a música genial e inexplicável de Mozart...


 
Os medíocres fazem o  mundo andar. São a sustança da economia e a salvação da humanidade. Justamente por isso, a política deve sempre se equilibrar no meio. Governos só são minimamente úteis se fizerem as coisas andar pra frente, mesmo que devagar, no ritmo da cadeira de rodas deste maestro.