Teoricamente,
posso me dizer um cientista político. Sou bacharel em Relações Internacionais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na prática, sempre me senti
como alvo da chacota do meu amigo Eduardo Bodra, vulgo Bobó, um cara sempre
pronto a lembrar: eu era um estudante de Relações Espaciais de um curso técnico
da zona oeste.
Bobó era meu amigo da rua Afonso de
Freitas, no Paraíso, colega do Bandeirantes. Entramos juntos na FEA-USP, ele em
Economia, eu em Administração, ambos lá pelos dezoito anos. Apesar de
caminharmos juntos nas primeiras alucinações universitárias – formamos uma
banda de forró chamada Acauã – ele entendeu mais rápido o que era a vida, foi
trabalhar para ganhar dinheiro e logo logo ganhou. Já eu fiquei perdido naquela
coisa da arte, da esquerda, do sentido da vida, dos sonhos de 1968, investi
mais alguns anos na música, foquei nos meus estudos de Relações Espaciais da
PUC-SP, enfim, deixei a Administração e a realidade a ver navios.
Mas o Bobó era apenas um polo do
espectro. No outro pólo estava o Daniel
Teixeira, vulgo Chamber, vulgo Yellows, vulgo Cavalli, vulgo muitas coisas. O
Daniel, também morador do bom e velho Paradaise, foi o entusiasta do começo da
banda Acauã, o cara que ligava pra todo mundo, que agendava os ensaios e, acima
de tudo, o cara que não sabia tocar
porra nenhuma, exceto um triângulo velho e enferrujado. Logo o Yellows passou
do triângulo para o teclado, comprado a prestações e a custa de muito
xingamento da santa Dona Carmem, mãe do Chamber. Pouco tempo depois o Cavalli
já tocava triângulo, pandeiro, teclado, baixo e já frequentava aulas na
Universidade Livre de Música com este que vos escreve. Nesse tempo o Bobó já estava nas mesas de
banco ganhando dinheiro.
Mais ou menos vinte anos depois o
Bobó continua ganhando dinheiro. O Daniel é um baixista de primeira linha,
produtor, empresário, membro de uma das melhores bandas de forró do Brasil, a
Bicho de Pé, dá entrevista na Grobo e tudo o mais. E eu, se não tivesse um talentinho
pra contar essa história, já me teria jogado da ponte JK. Olho para trás, vejo
o Bobó e o Chamber, e constato: fiquei no meio do caminho. Tenho um
dinheirinho? Tenho. Toco um violãozinho? Toco. Sou um Salieri? Sou.
Definitivamente sou.
O
Bobó e o Chamber me lembram o livro mais famoso do meu parente mais famoso: o
“Feijão e o sonho”, do meu tio-avô, imortal da ABL, Orígenes Lessa. Neste
romance, o protagonista Carlos Lara certa hora desabafa: não é possível
escrever poesia e pensar no dinheiro do feijão ao mesmo tempo, ainda mais com a
esposa Maria Rosa constantemente bufando no cangote. Pensando bem, mesmo
estando lá pelo meio, acho que cedi mais ao feijão. Estou mais para Maria Rosa do que para Carlos Lara.
Estar mais para Maria Rosa é frustrante, é broxante, traz
pouca emoção. Quando pensamos na vida pessoal, artística e profissional, o bode
fica evidente. Agora, resgatando meu protótipo de cientista político (mesmo
depois da chacota do Bobó), a ideia de um centrão talvez não seja de todo mal. Radicalizar
demais, não importa o lado, geralmente não dá certo.
Nas minhas eternas e constantes críticas aos governos do
PT, sempre fiz questão de frisar: a corrupção, apesar de bisonha, era o menor
dos problemas. Todos os outros partidos são corruptos também, a PF e o MP estão
provando todo dia o que todo mundo já sabia. Eu, por muito tempo, me iludi
achando que o pior do PT era a incompetência administrativa. Bobagem. Era
muito, muito pior. O legado mais nefasto do PT foi tornar o Brasil um país
dividido entre o feijão e o sonho. O ideário petista (que não se confunde
necessariamente com o ideário de esquerda) vende a ideia do sonho sem passar
pelo feijão.
Termino minha filosofada de botequim pensando: se é
importante aceitar a mediocridade na vida pessoal, na política, então, nem se
fala. Nossos amigos britânicos que o digam. Pouquíssimas pessoas tem talento ou
determinação para ser excelentes em alguma coisa. E estas pouquíssimas abriram
mão de um mundo de coisas para ter esse troféu. A política, arte de conciliar
os interesses de milhões, não tem espaço para gênios, líderes messiânicos, donos
de soluções mirabolantes para todos os problemas. Quando alguém se vende assim,
um Lula, ou mais recentemente, um Ciro Gomes, um Trump da vida, e os eleitores
compram, o resultado é quase sempre trágico e leva anos, talvez décadas para
ser consertado.
A cena final do meu filme preferido, “Amadeus”, de Milos
Forman, pelo qual sou totalmente obcecado, mostra o maestro Salieri sendo
empurrado em sua cadeira de rodas, velho, roto e amargo, louvando e absolvendo
todos os medíocres do mundo. “I will speak for you, Father. I speak for all
mediocrities in the world. I am their champion. I am their patron saint”. Enquanto o enfermeiro o empurra lentamente,
ouve-se ao fundo a música genial e inexplicável de Mozart...
Os medíocres fazem o
mundo andar. São a sustança da economia e a salvação da humanidade.
Justamente por isso, a política deve sempre se equilibrar no meio. Governos só
são minimamente úteis se fizerem as coisas andar pra frente, mesmo que devagar,
no ritmo da cadeira de rodas deste maestro.