Algumas memórias
Meu pai era um ótimo contador de
histórias. Talvez, hoje, eu goste tanto de escrever por conta disso, deve ser
uma terapia inconsciente, um remédio efêmero tentando combater o mal inexorável
da saudade. Dentre as muitas deliciosas histórias estavam as de Winston
Churchill e George Bernard Shaw. Muitas delas estavam devidamente incorporadas
nas apostilas de inglês criadas por ele, muito utilizadas nas Escolas Lessa de
Inglês, nos anos setenta, oitenta e noventa. Havia, por exemplo, a história do
Churchill, enfrentando profunda impopularidade durante a segunda guerra, devido
ao sofrimento terrível dos ingleses. Dizia o papai que George B. Shaw ia
estrear um peça e enviou ao Primeiro-Ministro uma carta dizendo: “Here are two
tickets for my first presentation. One for you and one for a friend. If you
have one”. O líder maior do Reino Unido teria respondido num telegrama: “can’t
come to first presentation. Please send tickets to second presentation, if you
have one”.
Tinha outra, igualmente deliciosa. O
General Montgomery, líder das tropas inglesas na mesma segunda guerra, já um
pouco mais bem-sucedido nas investidas contra Hitler, teria sido perguntado por
um repórter: “General, qual o segredo do seu sucesso?”. “Eu não fumo, não bebo
e não durmo com a mulher do próximo”, teria respondido o comandante. Lembrando
da figura sempre grudada a um bom charuto de Churchill, o mesmo repórter teria
perguntado a opinião do Primeiro-Ministro sobre o comentário: “Diga ao General
Montgomery que eu fumo, bebo, durmo com a mulher do próximo e sou o chefe
dele”.
Muitos alunos perguntavam, “mas,
professor, essa história aconteceu mesmo?”. Bons tempos, onde o Google não
existia, havia mais espaço para a imaginação e o mistério. Outro dia eu
brincava com um amigo sobre a impossibilidade de educar os filhos com a ameaça
do “Homem-do-saco”. Os pais antigos diziam, para de fazer bagunça! Vou te deixar
com o Homem-do-saco! Hoje qualquer moleque recém-alfabetizado digita “homem do
saco” no tablet e descobre que ele não existe. Perdeu toda a graça.
Sei lá de onde meu pai tirava essas histórias. Tirava dos
livros empoeirados e misteriosos, acumulados nas estantes enferrujadas das suas
muitas escolas de inglês. Aos alunos, ele respondia com um velho ditado
popular italiano: “Si non e vero, e bene
trovato”. Frase que Silvio Santos traduziria ao português como: “Se não é
verdade, é muito bem sacado!”.
Encerro esta primeira parte
lembrando mais uma – suposta – frase de Churchill, igualmente citada o tempo
todo pelo velho Lessa: “A democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada
melhor”. Não vou perder tempo no Google
para saber se é verídica. Prefiro ficar com o ditado italiano. Importa aqui
somente a ideia.
Primeiras
lições de democracia
Em 1982, eu tinha seis anos, meu pai
se candidatou a vereador em São Paulo, pelo PMDB. Naquela época o PMDB não
tinha tinha essa “vibe” de #foratemer que presenciamos hoje. O PMDB de 1982 era
mais ou menos como o PT antes de chegar ao poder, o emissário da ética e da
esperança. Meu pai se cercava com as forças “do bem”, Severo Gomes, Mario
Covas, Montoro, Almino Afonso, Flavio Bierrenbach, entre outros.
Lembro do meu pai me contando,
muitos anos depois, eu já um pouco mais velho, histórias desse período. A mais
impactante, sem dúvida, foi o dia em que um sujeito apareceu no comitê de
campanha oferecendo uma generosa contribuição financeira em troca de votos em
qualquer questão de transporte urbano. Meu tio, tesoureiro da campanha à época,
perguntou, como quem não queria nada, o que aconteceria se o acordo não fosse
cumprido. A resposta foi meio à Don Corleone. Dispensa comentários.
Meu pai não foi eleito naquele ano,
mesmo tendo mais de 12.000 votos. Algum tempo depois, estávamos juntos num jogo
besta qualquer do Corinthians no Pacaembu. O público pagante era de 12 mil e
algumas pessoas. Ele olhou em volta e disse: “Filho, dá pra acreditar que essa
quantidade de pessoas votou em mim?”. Não tinha maturidade para entender a
profundidade do comentário dele naquele dia, mas hoje fica bem fácil.
Mesmo assim, nada abalava o velho
Roberto Lessa. Estava sempre engajado nas eleições, sempre colocando faixas,
adesivos, a festa toda. Naquela eleição para a prefeitura onde o Fernando
Henrique perdeu para o Jânio, ele colocou um mosaico de adesivos montando “FH”
na traseira do Passat. O carro virou uma lenda no Paraíso. Lembro de outra
eleição, onde a Marta estava no segundo turno contra o Maluf, ele colocou uma
faixa na escola Lessa: “Esta escola apoia Marta Suplicy para prefeita de São
Paulo.”. Em resumo, fui criado por uma cara que colocava as convicções
políticas muita acima do ganho financeiro. Fui “mal” educado por um cara honesto,
idealista e amoroso. Se meu pai tivesse virado político, só Deus sabe o que
teria saído.
Segundas
lições de democracia
A admiração intelectual que tenho pelo meu pai deriva de
uma fato muito simples. Ele era profundo conhecedor de muitos assuntos, como
Teologia e Filosofia, por exemplo. E era profundo ignorante em muitos outros,
como economia, matemática e ciências biológicas. Conseguiu formar dois filhos,
uma médica e um sei-lá-o-que-eu-sou com algum conhecimento em economia e finanças,
respeitando o que havíamos conquistado.
Lembro bem de um dia, eu estava cursando Relação
Internacionais na PUC-SP, adorando tudo, aquela doutrinação marxista típica das
universidades brasileiras e, ao mesmo tempo, levava a duras penas a Administração
na FEA-USP, que eu odiava, achava aquilo um coisa de burgueses medíocres, “não
tinha nada a ver comigo” e coisa e tal. Meu pai esquerdista me chamou num canto
e disse: “Filho, nunca desmereça o conhecimento que você está adquirindo lá.
Tudo o que você aprender vai ser muito útil. Segura a onda.”. Sábio conselho.
Não apenas assegurou toda minha vida profissional e o meu sustento, mas também
– esse é contraponto irônico – transformou o filho num neoliberal.
Meu debate político com o papai parou numa época em que o
PT e o PSDB ainda dialogavam. Ele se foi ao mesmo tempo em que Mario Covas, tão
entrevado quanto ele, ainda teve forças
para apoiar Marta Suplicy na eleição contra o Maluf. Pobres idealistas.
Morreram pensando coisas boas, não imaginavam multidões relaxando e gozando
gostoso nas filas dos aeroportos.
Terceiras
lições de democracia
Uma amiga do meu pai recentemente
comentou num meus textos, “Iatã, quarenta anos é muito cedo para perder a
esperança, meu caro.”. Essa frase me martelou na cabeça por muitos dias. De
fato, perder a esperança é algo muito sério. Tenho um amigo no Banco Central
que me ajuda a montar um compêndio de corruptelas da língua portuguesa. Já
compilamos mais de cem. “A pulga atrás da ovelha”, “Chuva de granito”, “Reator
da Universidade”, entre outras. A mais pavorosa é a “A esperança é a única que
morre”.
Bom, eu perdi completamente a
esperança na política. No entanto, a frase não deve ser interpretada
literalmente, mas deve ser engolida na perspectiva Churchilliana descrita
acima. Minha “perca” de esperança não é fruto de esforços filosóficos. Muito
menos de convicções jurídicas. Estas, para mim, são sempre confusas e – como
diria o pensador brasileiro e ex-Ministro da Educação Aloísio Mercadante – “Eu
não sou adêvogado”. São fruto do mais puro empirismo. Minha vida brasileira me
fez assim.
Vida brasileira: a infância eu já
descrevi acima. Adolescência típica de pais opositores da ditadura, doutrinado
por professores marxistas na escola e depois idem ibidem na faculdade. Abençoado
pelo estudo de matemática e economia, começo a questionar tudo .
Pergunta um: como não perder a
esperança quando pessoas admiradas, inspiradoras, referências intelectuais e
artísticas durante toda uma vida, resolvem ignorar a corrupção mais descarada,
mais abjeta, e levantam bandeiras políticas como se aquela pataquada ainda
fizesse algum sentido?
Pergunta dois: como comemorar a
evidente morte lenta do PT nas eleições municipais se as alternativas são
igualmente sofríveis, alternam entre outros esquerdistas toscos, evangélicos de
meia-pataca do PRB tipo Marcelo Crivella ou conservadores decrépitos com João
Dória?
Pergunta três: como atribuir essa
situação à nossa “democracia muito jovem” ao testemunhar o Brexit e o debate
sofrível entre Hillary Clinton e Donald Trump ontem à noite?
Quartas
lições de democracia
Todo quarentão com eu já deve ter assistido ao filme
“Karatê Kid”, um clássico da Sessão da Tarde com Ralph Macchio e Pat Morita. Devo
a este filme uma grande lição de vida. Não tem nenhuma relação com Karatê, nem
com disciplina. Nos anos oitenta, eu passava algumas semanas com meus primos
Marcos e Daniela Lessa no prédio deles do Morumbi. Minha prima era apaixonada
pelo Ralph. Um dia ela programou o videocassete para gravar o Karatê Kid 1 que
passaria na sessão da tarde. Um engano
terrível ocorreu, apesar de todas as conferências e checagens exaustivas. O
transistor estava ligado ao SBT, e não a Globo. A fita gravou todo o programa
Silvio Santos e não o Karatê Kid. A Dani chorou muito, eu e o Marcos rimos até
passar mal, mas isso não tem absolutamente nada a ver com a conclusão do texto.
É apenas mais uma deliciosa memória.
A verdadeira lição veio apenas no Karatê Kid 2, quando o
senhor Miyagi, já em Okinawa, leva Daniel San ao tatame sagrado e revela os
dois segredos sagrados do Karatê: 1. Karatê só para defesa. 2. Volte à lição
número 1. Se eu hoje tivesse um filho ou filha e precisasse explicar o que é a
política, faria algo similar. Eu diria: “Lição número 1: Mestre Winston
Churchill disse, a democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada
melhor. Lição número 2: volte à lição número 1”.