27.9.16

Lições democráticas


Algumas memórias

            Meu pai era um ótimo contador de histórias. Talvez, hoje, eu goste tanto de escrever por conta disso, deve ser uma terapia inconsciente, um remédio efêmero tentando combater o mal inexorável da saudade. Dentre as muitas deliciosas histórias estavam as de Winston Churchill e George Bernard Shaw. Muitas delas estavam devidamente incorporadas nas apostilas de inglês criadas por ele, muito utilizadas nas Escolas Lessa de Inglês, nos anos setenta, oitenta e noventa. Havia, por exemplo, a história do Churchill, enfrentando profunda impopularidade durante a segunda guerra, devido ao sofrimento terrível dos ingleses. Dizia o papai que George B. Shaw ia estrear um peça e enviou ao Primeiro-Ministro uma carta dizendo: “Here are two tickets for my first presentation. One for you and one for a friend. If you have one”. O líder maior do Reino Unido teria respondido num telegrama: “can’t come to first presentation. Please send tickets to second presentation, if you have one”.

            Tinha outra, igualmente deliciosa. O General Montgomery, líder das tropas inglesas na mesma segunda guerra, já um pouco mais bem-sucedido nas investidas contra Hitler, teria sido perguntado por um repórter: “General, qual o segredo do seu sucesso?”. “Eu não fumo, não bebo e não durmo com a mulher do próximo”, teria respondido o comandante. Lembrando da figura sempre grudada a um bom charuto de Churchill, o mesmo repórter teria perguntado a opinião do Primeiro-Ministro sobre o comentário: “Diga ao General Montgomery que eu fumo, bebo, durmo com a mulher do próximo e sou o chefe dele”.

            Muitos alunos perguntavam, “mas, professor, essa história aconteceu mesmo?”. Bons tempos, onde o Google não existia, havia mais espaço para a imaginação e o mistério. Outro dia eu brincava com um amigo sobre a impossibilidade de educar os filhos com a ameaça do “Homem-do-saco”. Os pais antigos diziam, para de fazer bagunça! Vou te deixar com o Homem-do-saco! Hoje qualquer moleque recém-alfabetizado digita “homem do saco” no tablet e descobre que ele não existe. Perdeu toda a graça.

Sei lá de onde meu pai tirava essas histórias. Tirava dos livros empoeirados e misteriosos, acumulados nas estantes enferrujadas das suas muitas escolas de inglês. Aos alunos, ele respondia com um velho ditado popular  italiano: “Si non e vero, e bene trovato”. Frase que Silvio Santos traduziria ao português como: “Se não é verdade, é muito bem sacado!”.

            Encerro esta primeira parte lembrando mais uma – suposta – frase de Churchill, igualmente citada o tempo todo pelo velho Lessa: “A democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada melhor”.  Não vou perder tempo no Google para saber se é verídica. Prefiro ficar com o ditado italiano. Importa aqui somente a ideia.

Primeiras lições de democracia

            Em 1982, eu tinha seis anos, meu pai se candidatou a vereador em São Paulo, pelo PMDB. Naquela época o PMDB não tinha tinha essa “vibe” de #foratemer que presenciamos hoje. O PMDB de 1982 era mais ou menos como o PT antes de chegar ao poder, o emissário da ética e da esperança. Meu pai se cercava com as forças “do bem”, Severo Gomes, Mario Covas, Montoro, Almino Afonso, Flavio Bierrenbach, entre outros.

            Lembro do meu pai me contando, muitos anos depois, eu já um pouco mais velho, histórias desse período. A mais impactante, sem dúvida, foi o dia em que um sujeito apareceu no comitê de campanha oferecendo uma generosa contribuição financeira em troca de votos em qualquer questão de transporte urbano. Meu tio, tesoureiro da campanha à época, perguntou, como quem não queria nada, o que aconteceria se o acordo não fosse cumprido. A resposta foi meio à Don Corleone. Dispensa comentários.

            Meu pai não foi eleito naquele ano, mesmo tendo mais de 12.000 votos. Algum tempo depois, estávamos juntos num jogo besta qualquer do Corinthians no Pacaembu. O público pagante era de 12 mil e algumas pessoas. Ele olhou em volta e disse: “Filho, dá pra acreditar que essa quantidade de pessoas votou em mim?”. Não tinha maturidade para entender a profundidade do comentário dele naquele dia, mas hoje fica bem fácil.

            Mesmo assim, nada abalava o velho Roberto Lessa. Estava sempre engajado nas eleições, sempre colocando faixas, adesivos, a festa toda. Naquela eleição para a prefeitura onde o Fernando Henrique perdeu para o Jânio, ele colocou um mosaico de adesivos montando “FH” na traseira do Passat. O carro virou uma lenda no Paraíso. Lembro de outra eleição, onde a Marta estava no segundo turno contra o Maluf, ele colocou uma faixa na escola Lessa: “Esta escola apoia Marta Suplicy para prefeita de São Paulo.”. Em resumo, fui criado por uma cara que colocava as convicções políticas muita acima do ganho financeiro. Fui “mal” educado por um cara honesto, idealista e amoroso. Se meu pai tivesse virado político, só Deus sabe o que teria saído.
           
Segundas lições de democracia

A admiração intelectual que tenho pelo meu pai deriva de uma fato muito simples. Ele era profundo conhecedor de muitos assuntos, como Teologia e Filosofia, por exemplo. E era profundo ignorante em muitos outros, como economia, matemática e ciências biológicas. Conseguiu formar dois filhos, uma médica e um sei-lá-o-que-eu-sou com algum conhecimento em economia e finanças, respeitando o que havíamos conquistado. 

Lembro bem de um dia, eu estava cursando Relação Internacionais na PUC-SP, adorando tudo, aquela doutrinação marxista típica das universidades brasileiras e, ao mesmo tempo, levava a duras penas a Administração na FEA-USP, que eu odiava, achava aquilo um coisa de burgueses medíocres, “não tinha nada a ver comigo” e coisa e tal. Meu pai esquerdista me chamou num canto e disse: “Filho, nunca desmereça o conhecimento que você está adquirindo lá. Tudo o que você aprender vai ser muito útil. Segura a onda.”. Sábio conselho. Não apenas assegurou toda minha vida profissional e o meu sustento, mas também – esse é contraponto irônico – transformou o filho num neoliberal.

Meu debate político com o papai parou numa época em que o PT e o PSDB ainda dialogavam. Ele se foi ao mesmo tempo em que Mario Covas, tão entrevado quanto ele,  ainda teve forças para apoiar Marta Suplicy na eleição contra o Maluf. Pobres idealistas. Morreram pensando coisas boas, não imaginavam multidões relaxando e gozando gostoso nas filas dos aeroportos.


Terceiras lições de democracia


            Uma amiga do meu pai recentemente comentou num meus textos, “Iatã, quarenta anos é muito cedo para perder a esperança, meu caro.”. Essa frase me martelou na cabeça por muitos dias. De fato, perder a esperança é algo muito sério. Tenho um amigo no Banco Central que me ajuda a montar um compêndio de corruptelas da língua portuguesa. Já compilamos mais de cem. “A pulga atrás da ovelha”, “Chuva de granito”, “Reator da Universidade”, entre outras. A mais pavorosa é a “A esperança é a única que morre”.

            Bom, eu perdi completamente a esperança na política. No entanto, a frase não deve ser interpretada literalmente, mas deve ser engolida na perspectiva Churchilliana descrita acima. Minha “perca” de esperança não é fruto de esforços filosóficos. Muito menos de convicções jurídicas. Estas, para mim, são sempre confusas e – como diria o pensador brasileiro e ex-Ministro da Educação Aloísio Mercadante – “Eu não sou adêvogado”. São fruto do mais puro empirismo. Minha vida brasileira me fez assim.

            Vida brasileira: a infância eu já descrevi acima. Adolescência típica de pais opositores da ditadura, doutrinado por professores marxistas na escola e depois idem ibidem na faculdade. Abençoado pelo estudo de matemática e economia, começo a questionar tudo .

            Pergunta um: como não perder a esperança quando pessoas admiradas, inspiradoras, referências intelectuais e artísticas durante toda uma vida, resolvem ignorar a corrupção mais descarada, mais abjeta, e levantam bandeiras políticas como se aquela pataquada ainda fizesse algum sentido?
           
            Pergunta dois: como comemorar a evidente morte lenta do PT nas eleições municipais se as alternativas são igualmente sofríveis, alternam entre outros esquerdistas toscos, evangélicos de meia-pataca do PRB tipo Marcelo Crivella ou conservadores decrépitos com João Dória?

            Pergunta três: como atribuir essa situação à nossa “democracia muito jovem” ao testemunhar o Brexit e o debate sofrível entre Hillary Clinton e Donald Trump ontem à  noite?

Quartas lições de democracia

Todo quarentão com eu já deve ter assistido ao filme “Karatê Kid”, um clássico da Sessão da Tarde com Ralph Macchio e Pat Morita. Devo a este filme uma grande lição de vida. Não tem nenhuma relação com Karatê, nem com disciplina. Nos anos oitenta, eu passava algumas semanas com meus primos Marcos e Daniela Lessa no prédio deles do Morumbi. Minha prima era apaixonada pelo Ralph. Um dia ela programou o videocassete para gravar o Karatê Kid 1 que passaria na sessão da tarde.  Um engano terrível ocorreu, apesar de todas as conferências e checagens exaustivas. O transistor estava ligado ao SBT, e não a Globo. A fita gravou todo o programa Silvio Santos e não o Karatê Kid. A Dani chorou muito, eu e o Marcos rimos até passar mal, mas isso não tem absolutamente nada a ver com a conclusão do texto. É apenas mais uma deliciosa memória.

A verdadeira lição veio apenas no Karatê Kid 2, quando o senhor Miyagi, já em Okinawa, leva Daniel San ao tatame sagrado e revela os dois segredos sagrados do Karatê: 1. Karatê só para defesa. 2. Volte à lição número 1. Se eu hoje tivesse um filho ou filha e precisasse explicar o que é a política, faria algo similar. Eu diria: “Lição número 1: Mestre Winston Churchill disse, a democracia é uma merda, mas ainda não inventaram nada melhor. Lição número 2: volte à lição número 1”.



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