12.9.16

We are the world


Meu oxigênio atual é minha varanda. Depois de quase uma década solteiro, encontrei um amor e com ele vieram os desafios da convivência. Para dizer a verdade, seria injusto com minha quase-esposa (vamos nos casar daqui a quarenta dias) chamar de “desafios”. Depois de quebrado meu casulo de ogro, ela amoleceu meu coração e tudo ficou mais fácil. Mesmo assim, todo cronista precisa de um casulo. Um cronista fumante precisa de um casulo a céu aberto, isolado, incapaz de incomodar as bronquites e broncas da patroa.

Quando venho aqui pro casulo, fico caçando assunto pra escrever. Vejo se alguém falou alguma coisa interessante no zap zap, no feicibuqui, folheio uns livros, enfim, fico por aí. Outro dia estava ouvindo e vendo músicas dos anos oitenta no iútubi, hábito regular e salutar. Caí na asneira de clicar no videoclipe (esse termo entrega a idade) do “We are the World”. Pra que. Fiquei umas duas semanas dormindo e acordando com essa música na cabeça. Nunca uma melodia ficou impregnada tanto tempo no meu pensamento. Cada dia eu acordava com um verso. Um dia era o Bruce Springsteen, outro dia era o Lionel Richie, outro dia era o Bob Dylan, inferno total. 


 Tanto a música martelou e fui compelido a tentar racionalizar o fenômeno.  Uma espécie de autoanálise em meio ao estresse urbano. Não demorou muito para perceber a quantidade de referências. Minha infância inteira, cheia de traumas e delícias, parecia voltar como um vinil girando reverso. Michael Jackson, vestido de preto com detalhes em dourado, me lembrou do Thriller, o primeiro álbum da minha vida. Não lembro se pedi de presente, de onde surgiu, só lembro de colocá-lo pra tocar na minha vitrola da turma da Mônica e da minha irmã tirando sarro de mim porque eu cantava “Piret, Piret”, ao invés de “Beat it, Beat it”.    



 


A lista é longa. O “yê yê yê” agudo de Cindy Lauper me teleportava ao inesquecível Goonies, de tantas sessões da tarde. O swing do Stevie Wonder e do Ray Charles me lembrava a piada politicamente incorreta e (obviamente engraçada) dizendo que a gravação da música só foi possível porque um balançava pra frente e pra trás e o outro de um lado para o outro. Outra vozes me remetiam ao “Hit Parades” da minha mãe e sua vitrola, como Paul Simon e Willie Nelson: “When you’re weary... Feeling small". São vozes de saudade dos bailinhos. Assombrações do velho Paraíso soprando de longe, mesmo eu aqui na minha varandinha distante no cerrado do Noroeste brasiliense. 

 

O videoclipe me lembrou outra coisa interessante. Na minha última aula de espanhol, meu professor Eduardo comentou como sua percepção em relação ao cantor Julio Iglesias mudou ao longo dos anos. Comentei minha experiência bastante similar de brasileiro em relação ao Rei Roberto Carlos. Concluímos juntos, após boas risadas e uma ótima conversação para melhorar meu espanhol, que os velhos acabam ficando mais tolerantes com as supostas breguices e mais atentos ao talento dos artistas. “We are the world” pode até ser meio piegas. Mas as vozes dos melhores cantores americanos, arranjados por Quincy Jones... Não tem pra ninguém.

Sentado num divã imaginário, ainda acho que o “We are the world” está mesmo perseguindo meu neoliberalismo. Onde está aquele adolescente preocupado com os pobres, mobilizado pela fome na África? Aquele cara que fazia trabalho voluntário? Meu altruísmo, meu “we are the world”, se perdeu em algum lugar entre a eleição do Lula em 2002 e o dia em que, finalmente, encontrei minha estabilidade financeira.

3 comentários:

Edison Waetge Jr disse...

Por via das dúvidas, não vou clicar nos links...

Paula Helena disse...

Só de ler o texto já comecei a ouvir a música na cabeça, credo! Rs
Adorei o texto, e ter voltado aqui :)

Eduardo Valle disse...

Eu jurava que o Steve Perry era algum cantor sertanejo infiltrado no USA for Africa...

E que tal esta versão brasiliense(!) para "We are the world"?:

https://www.youtube.com/watch?v=dPx7THH4OTM