Meu oxigênio atual é minha varanda. Depois de quase uma
década solteiro, encontrei um amor e com ele vieram os desafios da convivência.
Para dizer a verdade, seria injusto com minha quase-esposa (vamos nos casar
daqui a quarenta dias) chamar de “desafios”. Depois de quebrado meu casulo de
ogro, ela amoleceu meu coração e tudo ficou mais fácil. Mesmo assim, todo
cronista precisa de um casulo. Um cronista fumante precisa de um casulo a céu
aberto, isolado, incapaz de incomodar as bronquites e broncas da patroa.
Quando venho aqui pro casulo, fico caçando assunto pra
escrever. Vejo se alguém falou alguma coisa interessante no zap zap, no
feicibuqui, folheio uns livros, enfim, fico por aí. Outro dia estava ouvindo e
vendo músicas dos anos oitenta no iútubi, hábito regular e salutar. Caí na
asneira de clicar no videoclipe (esse termo entrega a idade) do “We are the
World”. Pra que. Fiquei umas duas semanas dormindo e acordando com essa música
na cabeça. Nunca uma melodia ficou impregnada tanto tempo no meu pensamento.
Cada dia eu acordava com um verso. Um dia era o Bruce Springsteen, outro dia
era o Lionel Richie, outro dia era o Bob Dylan, inferno total.
Tanto a música
martelou e fui compelido a tentar racionalizar o fenômeno. Uma espécie de autoanálise em meio ao
estresse urbano. Não demorou muito para perceber a quantidade de referências.
Minha infância inteira, cheia de traumas e delícias, parecia voltar como um
vinil girando reverso. Michael Jackson, vestido de preto com detalhes em
dourado, me lembrou do Thriller, o primeiro álbum da minha vida. Não lembro se
pedi de presente, de onde surgiu, só lembro de colocá-lo pra tocar na minha
vitrola da turma da Mônica e da minha irmã tirando sarro de mim porque eu
cantava “Piret, Piret”, ao invés de “Beat it, Beat it”.
A lista é longa. O “yê yê yê” agudo de Cindy Lauper me
teleportava ao inesquecível Goonies, de tantas sessões da tarde. O swing do
Stevie Wonder e do Ray Charles me lembrava a piada politicamente incorreta e
(obviamente engraçada) dizendo que a gravação da música só foi possível porque
um balançava pra frente e pra trás e o outro de um lado para o outro. Outra
vozes me remetiam ao “Hit Parades” da minha mãe e sua vitrola, como Paul Simon
e Willie Nelson: “When you’re weary... Feeling small". São vozes de saudade dos
bailinhos. Assombrações do velho Paraíso soprando de longe, mesmo eu aqui na
minha varandinha distante no cerrado do Noroeste brasiliense.
O videoclipe me lembrou outra coisa interessante. Na minha
última aula de espanhol, meu professor Eduardo comentou como sua percepção em
relação ao cantor Julio Iglesias mudou ao longo dos anos. Comentei minha
experiência bastante similar de brasileiro em relação ao Rei Roberto Carlos.
Concluímos juntos, após boas risadas e uma ótima conversação para melhorar meu
espanhol, que os velhos acabam ficando mais tolerantes com as supostas
breguices e mais atentos ao talento dos artistas. “We are the world” pode até
ser meio piegas. Mas as vozes dos melhores cantores americanos, arranjados por
Quincy Jones... Não tem pra ninguém.
Sentado num divã imaginário, ainda acho que o “We are the
world” está mesmo perseguindo meu neoliberalismo. Onde está aquele adolescente
preocupado com os pobres, mobilizado pela fome na África? Aquele cara que fazia
trabalho voluntário? Meu altruísmo, meu “we are the world”, se perdeu em algum
lugar entre a eleição do Lula em 2002 e o dia em que, finalmente, encontrei
minha estabilidade financeira.
3 comentários:
Por via das dúvidas, não vou clicar nos links...
Só de ler o texto já comecei a ouvir a música na cabeça, credo! Rs
Adorei o texto, e ter voltado aqui :)
Eu jurava que o Steve Perry era algum cantor sertanejo infiltrado no USA for Africa...
E que tal esta versão brasiliense(!) para "We are the world"?:
https://www.youtube.com/watch?v=dPx7THH4OTM
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