18.10.16

Sobre a política, a economia e a dor

O dilema é recorrente. Eu paro na frente do Microsoft Word, encaro aquela tela branca aterrorizante, tento encontrar uma maneira de não escrever sobre política e economia. Me sinto um cronista de merda, que cronista não sabe escrever sobre os bares da vida, sobre futebol, sexo, sei lá, sobre o cinema polonês? Cada vez mais me sinto monotemático. O Brasil dos últimos treze anos me presenteou com um bode artístico. Um bode fedorento e incômodo. Tento voltar aos anos oitenta e noventa, quando os bodes artísticos passeavam fagueiros pelas vastas campinas da cultura nacional.

Tive, como menino, todas as chances de ser artista. Pais fofos, esquerdistas, contra a ditadura, liberais e coisa e tal. Tenho as melhores recordações possíveis das aulas de violão com a Paty e das aulas de piano com a Dona Marlene. Estas duas mulheres extraordinárias, se não me fizeram um grande músico, com certeza me fizeram um ser humano muito melhor. Nas aulas de piano eu decorava as músicas preferidas e tentava enganar a Dona Marlene, fingindo estar lendo a partitura. Bastava um olhar dela, de soslaio, para acabar aquela farsa. A Paty, por sua vez, sempre insistia, “vai, Iatã, não custa nada você estudar um pouco mais”.

A vida foi, pouco a pouco, me tirando da arte e me levando a um certo mundo real. Tentei, por um curto tempo, me sustentar como artista. Quando dei por mim estava no BankBoston, estagiando. Naquela época pensei (impossível não rir agora), “o Gil também trabalhou em empresa quando era jovem”.

Minha história, de lá pra cá, pode ser resumida rapidamente. Na verdade é um grande chavão. Que bonitinho... Ele queria ser artista e acabou mais um burocrata do mercado financeiro paulista.  Mudei pouco, de burocrata do mercado privado paulista para burocrata do funcionalismo público federal. É quase a mesma coisa. Só muda a pressão menor e o salário maior.

Meus amigos artistas do passado, infelizmente, com raras exceções, viraram amigos de Facebook. Minha relação com eles é efêmera, minha realidade balança entre balanços e balanços de banco.

A arte voltou à minha vida de maneira totalmente inesperada. Comecei a escrever num momento em que o normal seria estar desesperado. Estava divorciado, desempregado, sem renda e sem perspectiva profissional. Comecei a escrever para não enlouquecer. Aos poucos percebi as letras ganhando o papel das notas musicais, do estudo sofrido, anos a fio, incapazes de emocionar uma minhoca moribunda. Minhas palavras despretensiosas atingiram, finalmente, alguns corações. Minha música morreu, em paz, nas lembranças adolescentes.

Perceber a capacidade de escrever é reconfortante, mas aí surge o desafio constante da tela em branco. Meu pior pesadelo de cronista é me imaginar uma cópia barata do Arnaldo Jabor. A coluna do Jabor nos jornais e rádios parece uma vitrola riscada. Mesmo concordando como boa parte das ideias – todo mundo conhece minha ojeriza ao PT e similares –, aquilo cansa. Porra, Jabor, você não tem nada a dizer sobre o cinema polonês? Sei lá, fala sobre a Síria. Fala sobre a sua última namorada, sobre um restaurante do Leblon...

Por outro lado, a pobreza de cronistas brasileiros na atualidade pode ser vista como oportunidade. Afinal, não basta não termos mais Rubens Bragas e Nélsons Rodrigues. Precisamos aguentar o Fábio Porchat e o Gregório Duvivier resolvendo achar que são cronistas, nos “melhores jornais do país”. Outro dia estava preenchendo uma ficha qualquer num cartório e surgiu o campo “Profissão”. Quase escrevi: “Funcionário público federal e cronista”. Logo um senso profundo de autocrítica e de ridículo tomou conta de mim. “Sério, Iatã? Cronista? Você não se enxerga?”. Talvez não, mas, numa boa, se o Gregório Duvivier é cronista eu também sou.

As crônicas que escrevo também andam meio monotemáticas. Preciso ver mais filmes poloneses, preciso andar mais pelo Leblon, preciso ler mais sobre a Síria. Só consigo escrever sobre política, economia e dor. E a dor maior é tentar ser artista com bode de artista. Essa coisa Sônia Braga: “Brazil is experiencing a Coup d’état”. Essa coisa “Fora Temer” (Saco, estou imitando o Jabor de novo...). Tenho pesadelos com mulheres de cabelo azul e óculos de aro vermelho defendendo a Venezuela em fóruns de USP. Eu tenho essa coisa. É mais forte do que eu. Talvez a culpa seja do Banco Central, talvez a culpa seja dos rentistas exploradores. Talvez eu deva desculpas. Minha identidade artística se manifesta em textos como esse.

Talvez – e apenas talvez – ter a pretensão de alertar alguns artistas seja um pequena forma de arte. Quero incorporar o fôlego para encher o peito e gritar, como se estivesse numa arena de teatro amador: Vocês são ignorantes e estão errados em achar que defender este Estado gordo e corrupto é progressismo!

Minha crônica vem de um coração burocrata. Sempre tive horror à essa gente, até me tornar um deles. Não somos tão pavorosos, eu lhes asseguro. Podem chegar perto, a probabilidade de tomar uma mordida é baixa. Existe arte, existe honestidade, existem projetos no funcionalismo público federal. E, acreditem, não somos nós os únicos responsáveis pela falência da Previdência.

Minha arte pode ser tosca e impopular entre as senhoras de cabelo azul e óculos vermelhos. Pode até causar asco entre amigos queridos e, principalmente, entre artistas. Prefiro insistir – é o que me resta – na beleza das curvas de oferta e demanda, dos índices de inflação, da mensuração do endividamento das famílias. Voto no gosto de fazer algo concreto, sem ideologias. Eu prefiro ser um burocrata metido a artista do que ser um artista sem alma.