O dilema é recorrente. Eu paro na frente do Microsoft Word, encaro
aquela tela branca aterrorizante, tento encontrar uma maneira de não
escrever sobre política e economia. Me sinto um cronista de merda, que
cronista não sabe escrever sobre os bares da vida, sobre futebol, sexo,
sei lá, sobre o cinema polonês? Cada vez mais me sinto monotemático. O
Brasil dos últimos treze anos me presenteou com um bode artístico. Um
bode fedorento e incômodo. Tento voltar aos anos oitenta e noventa,
quando os bodes artísticos passeavam fagueiros pelas vastas campinas da
cultura nacional.
Tive, como menino, todas as chances de ser
artista. Pais fofos, esquerdistas, contra a ditadura, liberais e coisa e
tal. Tenho as melhores recordações possíveis das aulas de violão com a
Paty e das aulas de piano com a Dona Marlene. Estas duas mulheres
extraordinárias, se não me fizeram um grande músico, com certeza me
fizeram um ser humano muito melhor. Nas aulas de piano eu decorava as
músicas preferidas e tentava enganar a Dona Marlene, fingindo estar
lendo a partitura. Bastava um olhar dela, de soslaio, para acabar aquela
farsa. A Paty, por sua vez, sempre insistia, “vai, Iatã, não custa nada
você estudar um pouco mais”.
A vida foi, pouco a pouco, me
tirando da arte e me levando a um certo mundo real. Tentei, por um curto
tempo, me sustentar como artista. Quando dei por mim estava no
BankBoston, estagiando. Naquela época pensei (impossível não rir agora),
“o Gil também trabalhou em empresa quando era jovem”.
Minha
história, de lá pra cá, pode ser resumida rapidamente. Na verdade é um
grande chavão. Que bonitinho... Ele queria ser artista e acabou mais um
burocrata do mercado financeiro paulista. Mudei pouco, de
burocrata do mercado privado paulista para burocrata do funcionalismo
público federal. É quase a mesma coisa. Só muda a pressão menor e o
salário maior.
Meus amigos artistas do passado, infelizmente,
com raras exceções, viraram amigos de Facebook. Minha relação com eles é
efêmera, minha realidade balança entre balanços e balanços de banco.
A arte voltou à minha vida de maneira totalmente inesperada. Comecei a
escrever num momento em que o normal seria estar desesperado. Estava
divorciado, desempregado, sem renda e sem perspectiva profissional.
Comecei a escrever para não enlouquecer. Aos poucos percebi as letras
ganhando o papel das notas musicais, do estudo sofrido, anos a fio,
incapazes de emocionar uma minhoca moribunda. Minhas palavras
despretensiosas atingiram, finalmente, alguns corações. Minha música
morreu, em paz, nas lembranças adolescentes.
Perceber a
capacidade de escrever é reconfortante, mas aí surge o desafio constante
da tela em branco. Meu pior pesadelo de cronista é me imaginar uma
cópia barata do Arnaldo Jabor. A coluna do Jabor nos jornais e rádios
parece uma vitrola riscada. Mesmo concordando como boa parte das ideias –
todo mundo conhece minha ojeriza ao PT e similares –, aquilo cansa.
Porra, Jabor, você não tem nada a dizer sobre o cinema polonês? Sei lá,
fala sobre a Síria. Fala sobre a sua última namorada, sobre um
restaurante do Leblon...
Por outro lado, a pobreza de cronistas
brasileiros na atualidade pode ser vista como oportunidade. Afinal, não
basta não termos mais Rubens Bragas e Nélsons Rodrigues. Precisamos
aguentar o Fábio Porchat e o Gregório Duvivier resolvendo achar que são
cronistas, nos “melhores jornais do país”. Outro dia estava preenchendo
uma ficha qualquer num cartório e surgiu o campo “Profissão”. Quase
escrevi: “Funcionário público federal e cronista”. Logo um senso
profundo de autocrítica e de ridículo tomou conta de mim. “Sério, Iatã?
Cronista? Você não se enxerga?”. Talvez não, mas, numa boa, se o
Gregório Duvivier é cronista eu também sou.
As crônicas que
escrevo também andam meio monotemáticas. Preciso ver mais filmes
poloneses, preciso andar mais pelo Leblon, preciso ler mais sobre a
Síria. Só consigo escrever sobre política, economia e dor. E a dor maior
é tentar ser artista com bode de artista. Essa coisa Sônia Braga:
“Brazil is experiencing a Coup d’état”. Essa coisa “Fora Temer” (Saco,
estou imitando o Jabor de novo...). Tenho pesadelos com mulheres de
cabelo azul e óculos de aro vermelho defendendo a Venezuela em fóruns de
USP. Eu tenho essa coisa. É mais forte do que eu. Talvez a culpa seja
do Banco Central, talvez a culpa seja dos rentistas exploradores. Talvez
eu deva desculpas. Minha identidade artística se manifesta em textos
como esse.
Talvez – e apenas talvez – ter a pretensão de
alertar alguns artistas seja um pequena forma de arte. Quero incorporar
o fôlego para encher o peito e gritar, como se estivesse numa arena de teatro amador: Vocês são ignorantes e estão errados em achar que defender este
Estado gordo e corrupto é progressismo!
Minha crônica vem de um
coração burocrata. Sempre tive horror à essa gente, até me tornar um
deles. Não somos tão pavorosos, eu lhes asseguro. Podem chegar perto, a
probabilidade de tomar uma mordida é baixa. Existe arte, existe
honestidade, existem projetos no funcionalismo público federal. E,
acreditem, não somos nós os únicos responsáveis pela falência da
Previdência.
Minha arte pode ser tosca e impopular entre as
senhoras de cabelo azul e óculos vermelhos. Pode até causar asco entre
amigos queridos e, principalmente, entre artistas. Prefiro insistir – é o
que me resta – na beleza das curvas de oferta e demanda, dos índices de
inflação, da mensuração do endividamento das famílias. Voto no gosto de
fazer algo concreto, sem ideologias. Eu prefiro ser um burocrata metido
a artista do que ser um artista sem alma.
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