27.2.11

Rush

A música faz parte torta da minha vida. Desde pequeno aprendi a gostar de tudo. Minha mãe sempre tocou violão de uma maneira muito pessoal, espontânea, intensa, amplificada por sua voz grave e poderosa. Uma das memórias mais fortes da minha infância é uma gravação linda que ela fez da música "Folhetim" do Chico. A frase "Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim" me assombrou de uma maneira saudável por anos a fio. O velho Lessa também era músico, tinha ouvido absoluto. Reza o papeado familiar que a Dona Marina Mendes Leite, uma das mais conceituadas professoras de piano de São Paulo, quis tirá-lo da escola ainda pequeno para que ele se dedicasse exclusivamente ao instrumento. Meu avô não deixou. Talvez a repressão familiar ao exercício das artes inflingida aos dois em algum, ou alguns, pontos da vida me deram a oportunidade de conhecer as mais diferentes formas de música na coleção de vinis que até hoje habita o armário de cortiça da rua Afonso de Freitas. E também de estudar o instrumento que quisesse, na hora que bem entendesse. Passei por inúmeros professores, instrumentos e escolas, todos excelentes. Mas, como diria Salieri ao crucifixo pregado na parede de seus aposentos num dos meus filmes preferidos (Amadeus, de Milos Forman), Deus não me presenteou com o talento de Mozart. Aliás, com o talento de ninguém. Pelo menos para a música.



Amadeus é um filme de 1984. Portanto, Salieri me ensinou muito cedo o quanto é doloroso abrir mão de algo que se ama e que não te ama de volta. Tal como ele , não esmoreci e fui em frente. No Colégio Bandeirantes fiz os amigos que tenho perto até hoje. Muitos gostavam de música e tocavam também. Tocamos muito violão no "borrachão", o antigo pátio da escola onde um dia se dormiu durante aulas cabuladas e tocou-se Metallica e Red Hot Chilli Peppers. Hoje a admistração tucana transformou o borrachão numa quadra de futebol de salão como outra qualquer. Sorte dos pais leitores da Veja. Tive bandas durante e depois desse tempo. Hoje finalmente desisti. Conversei sobre isso com o Rennó recentemente, quando ele me visitou aqui em Brasília no final do ano passado. Ele é baterista e fez parte dessa história toda. Disse a ele que chegou a hora da resignação. Que na minha opinião, daquela turma, só Giana e Alan foram abençoados pelo talento. Nós outros somos, em maior ou menor grau, Salieris. Aí o Rennó retrucou com razão que isso não era motivo pra parar de tocar. Concordei. O mundo não é feito de Mozarts. Não é à toa que o filme "Amadeus" termina com Salieri abençoando e redimindo todos os medíocres do mundo. O mundo pertence a eles, quão melhor estaríamos se assim não fosse? Parar de tocar pra mim foi, antes de um exercício de vaidade, uma tentativa de encontrar o que me faz feliz.

Para chegar na explicação do titulo desta postagem, preciso dizer que deixar de tocar instrumentos não significa deixar de gostar de música. Mais especificamente de ouvir música. No mundo de hoje a música virou um "fundo". Uma coisa que fica atrás, segundo plano. Mesmo tendo sido sempre um músico medíocre, ficava puto naqueles momentos da festinha ou do churrasco em que um amigo bêbado sacava um violão e gritava "Aí, galera, agora o Iatã vai tocar um violão pra gente!". Dez segundos depois tava todo mundo berrando, xavecando a mulher do lado e ignorando completamente o que eu estava fazendo. Em resumo, queriam que eu ficasse fazendo "fundo musical". Pô, se é assim, bota um CD. Sempre que eu dizia isso me tachavam de estressadinho e estrela. Eu respondia: Ou você senta aí de perninha cruzada, fica escutando ou canta junto, ou não me encha a paciência.

Esse tipo de comportamento me faz entender porque só hoje, com quase trinta e cinco anos, eu começo a entender, com profundidade, algumas músicas que eu escuto desde a adolescência. A gente não foi educado pra entender música, só pra ouvir, preferencialemente de fundo pra outra atividade. Isso vale pra qualquer forma de arte, obviamente, mas no meu caso a música deu a epifania. Tenho ouvido muito Rush, uma banda de rock progressivo canadense que o George, o Peter e a Giana me fizeram gostar nos tempos do Bandeirantes. Nunca me esqueço de um dia na casa da Giana, eu devia ter uns dezesseis anos, estávamos estudando para alguma prova e num dos inúmeros intervalos para descansar, o irmão dela nos chamou para ouvir um disco do Rush. Ela, com seu talento Mozartiano, me mostrava como cada parte tinha um andamento diferente, as mudanças de intensidade, como a bateria respondia a cada momento da proposta da música. Esse dia não saiu da minha cabeça porque, quando fiz um curso de escrita criativa em São Paulo, a professora colocou alguns vídeos e trechos de filme para explicar a importância (ou não, para os modernosos) da fórmula introdução-desenvolvimento-clímax-conclusão num conto ou romance. Nessa hora eu lembrei da "YYZ" do Rush, dos meus amigos, da adolescência e de como aquele final de solo da música, para quem sabe apreciar, pode ser um clímax maravilhoso. Dependendo da parceira, até melhor do que o do sexo.



PS: Postagem em homenagem ao amigo Caio Macedo Carvalhal, um dos maiores fãs do Rush que o Colégio Bandeirantes já conheceu.