21.12.11

81 Casamentos


Há um preço para o conforto, a estabilidade e o bom salário de um juiz da vara da família. O bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, fez-se responsável por esta salutar contrapartida dos magistrados aos cofres públicos estaduais. Mas tem detalhe: uns sempre pagam pelos outros. Sobrou para o dileto Alberto Kirchoff, morador da distante Barra da Tijuca, pai de três filhos e dois casamentos no currículo. Lembrou-se do compromisso dominical enquanto tomava um licor digestivo na varanda e observava o caçula circular entre os brinquedos. Logo pensou que graças a deus já acabara o campeonato brasileiro. Deus, aliás, deu esta colher de chá, mas mandou a conta. Santa Cruz exigia sua convocação no time titular. Telefonou para o primo paulista, filho de um falecido pastor presbiteriano que adorava celebrar matrimônios. Tem algum material? Tinha. Estava parcialmente resolvido o problema, realizar uma cerimônia pública onde oitenta e um casais deixariam a praça comprometidos.

No domingo, um coquetel de ansiedade com pitadas de medo da hipocrisia. O juiz entrou no carro e jogou no banco do passageiro as anotações inconvictas. "Senhor, este é um momento soleníssimo na vida destes teus filhos que hoje constituem uma família". O caminho da linha amarela, depois vermelha, cheio de janelas, dentro de cada uma um contubérnio, ironizou-se. A partir daquele dia oitenta e uma novas gavetinhas estariam diferentes, abençoadas, desgraçadas, chanceladas. "Senhor, Tu tens sido nosso refúgio de geração em geração". Assim passou pela estrada de ferro Central do Brasil, andou mais um bocado e avistou a multidão que o aguardava ansiosa na praça da paróquia.

Ali do púlpito improvisado, já suando em bicas, o juiz Alberto surpreendeu-se com a organização dos futuros cônjuges, respeitando sem tumulto o espaço alheio em clima de confraternização. Os convidados se comportavam como se Vasco e Flamengo fossem um time só, Dinamite tocasse de calcanhar para Zico, o campo só tivesse uma trave e o jogo já estivesse ganho. Só admirando de longe. As meninas eram daminhas-de-honra à distância, sem perder a pose. Os meninos, inconscientemente solidários ao juiz, também agradeciam pelo fim do campeonato brasileiro. Após certa acomodação, Santa Cruz viveu o Carnaval às avessas, um silêncio esquisito, todos os ouvidos voltados ao meritíssimo.

Convicto ou não, a hora estava lá, e começou. Houve um ponto, no auge do calor e das lembranças do primeiro casamento, em que resolveu apelar para a benção inconteste: "Coroa dos velhos são os filhos dos filhos e a glória dos filhos são seus pais". Justificou a atitude pela experiência rotineira e pessoal: casamento bagunçado era todo dia, filho indesejado não. Ao dizer o trecho final - "Perdoem sempre um ao outro, respeitem-se mutuamente e que, acima de tudo, esteja o amor, vínculo da perfeição" - percebeu a diferença entre citar o dito cujo para duas e para cento e sessenta e duas pessoas. Lágrimas, abraços e cumprimentos retomaram a rotina carnavalesca do subúrbio carioca e ninguém era de ninguém. Exceto para o magistrado Alberto, esse era exclusivo da fila caótica que se formava para cumprimentá-lo pela cerimônia.

Assim foi o domingo deste preclaro funcionário público carioca. Um dia para mudar a vida dos outros, pensar a própria ou talvez para nada. A corrida de volta fez um pouco mais de sentido, as pequenas luzes das linhas não eram as mesmas, a música aleatória do rádio causou alguma emoção, sua profissão, um pouco mais feliz, saiu da rotina e tirou férias. Em casa, deparou-se com os mesmos filhos, as mesmas alegrias e os mesmos problemas. Mas ainda teve a vontade de ir ao computador, escrever ao primo paulista e colocar no campo do assunto: “Sucesso”.

4.12.11

Obrigado Doutor

Doutor Sócrates, vá com Deus, e obrigado por ter ajudado e me contaminar com esse maravilhoso virus da paixão pelo Corinthians, sem contar a paixão pelo futebol-arte, pela democracia, pela inteligência, pelo senso crítico aguçado, pela sinceridade e, também, por que não?, por uma cervejinha bem gelada!

29.11.11

O sentido da vida

Algumas coisas que lemos nem são assim tão geniais, mas às vezes pelo próprio fato de óbvias e até então despercebidas serem, ficam marcadas para sempre. Minha vida nunca mais foi a mesma depois de ler um livrinho (livrinho por ser pequeno, não por ser ruim) do Rubem Alves chamado "O que é religião?". Não consigo fazer uma postagem do meu blog sem falar do meu pai e já desisti de tentar fazer diferente. Quando li este livro, ainda estava numa luta interna para tentar aceitar a religião dele, um pastor presbiteriano dedicado, genuinamente apaixonado e, acima de tudo, dono de uma fé autêntica, sincera e pródiga de resultados. Resultados práticos, sim senhor. Mais de uma vez o vi passar um dia terrível, cheio de problemas, fazer uma oração, virar para o lado e dormir como um anjo. Sua frase típica era: "O Senhor proverá, meu filho. O Senhor proverá.". O fato é que infelizmente nunca me convenci. Sempre achei a igreja presbiteriana um lugar agradável e lá me senti muito bem. Acredito que os valores cristãos que meu pai me passou contribuiram para me fazer uma pessoa legal e honesta hoje. Mas não acredito em Deus da maneira como formula a Bíblia cristã, nem como formula nenhuma outra religião. 

    A idéia do livro do Rubem Alves a que me refiro certamente não foi formulada por ele, algum ou alguns filósofos já deveriam ter o crédito. Se ele tem um grande mérito, é o de de escrever coisas supostamente complexas de uma maneira simples. Esse para mim é o segredo do grande professor e do grande escritor, um talento raro. Ele diz que a diferença entre os seres humanos e os animais, como já citei anteriormente neste blog, é que nós temos consciência da própria existência e, por isso, vivemos vinte e quatro horas por dia, ou melhor, vivemos algumas horas por dia, uns mais outros menos, em busca de prover água e comida para não morrer, e as demais buscando dar a esta existência algum sentido. O único e óbvio problema é que este sentido não existe. Aqui vou começar a minha pequena confissão pessoal. E isso me preocupa: se estou assim com 35 anos, morro de medo pensar no que me passará pela cabeça quando tiver 80. Antes que meus leitores, amigos e parentes (como se houvesse alguma diferença!) pensem que eu estou deprimido ou com pensamentos suicidas, já deixo de antemão o tranquilizante: não é o caso. Aliás, pelo contrário. Como disse antes, o que me preocupa é o que fazer com os cinquenta anos pela frente.

    Há algum tempo um certo paradoxo me persegue. Se buscar um sentido decente para a vida me faz inexoravelmente infeliz, para que serve buscar um sentido para a vida? Várias vezes me peguei desejando ser ignorante, sem educação, pobre de dinheiro e de espírito, ser capaz de passar duas noites seguidas bêbado numa micareta ouvindo Ivete e Chiclete no máximo volume, no meio de uma multidão ensandecida e voltar para casa feliz, realizado, pleno de sentido! Mas não, não pode. Minha mãe me falava ainda criança que sexo está "na cabeça". Meu pai lia Camões, José de Alencar e Machado de Assis para mim na cama. Me fizeram aprender, junto à saudosa Dona Marlene, a sonata em Dó Maior de Mozart no piano com doze anos. Tive que estudar nos melhores colégios de São Paulo para aprender a ter senso crítico e ler nas entrelinhas. Na verdade é um certo fardo. Ainda adolescente, já tinha plena consciência de que a galera do Edifício Ajaccio poderia até ser mais burra, mas certamente era mais feliz.  Depois dessa educação, tudo fica difícil.

    Certamente já estou parecendo pedante. Mas, tarde demais. A partir de agora só vai piorar. Fato é que o paradoxo também perpassa a economia e a política brasileira. Todos os dias me pego fascinado pela nossa atual pujança financeira. A brasileirada invadindo Miami, Buenos Aires, Paris, comprando tênis, Blue-Ray, camisa de grife. Acho lindo esse Brasil pós-Lula e pós-PT. Ninguém está preocupado com o sentido da vida. O negócio é aproveitar a expansão do crédito, fazer faculdade, virar doutor e vamos que vamos. Estamos rumo a uma nação feliz. Eu tento criticar, mas cada dia mais não consigo.

    O suprassumo do Brasil pós-Lula, para mim, é passar algumas horas no saguão de um aeroporto. Minha referência de viagem longa sempre foi a do terminal rodoviário Tietê, onde esperava o ônibus verde da Penha a caminho de Lages para visitar a vó Waltrud e vô Jadão, de saudosíssimas memórias. Hoje, para meu deleite, o padrão é o aeroporto de Congonhas e o JK. O que dizer? Talvez que a experiência me tenha feito criar o conceito de "pobre com dinheiro". Pessoas falando alto no celular, furando filas, atrasando os voos como se todo mundo tivesse a obrigação de esperar, enfim, um espetáculo circense de brasileiros para os quais o mundo atual faz todo o sentido. O melhor de tudo nos aeroportos, dizem que quem formulou foi o Antonio Prata. Pela genialidade deve ser. Quando um avião pousa e o comissário de bordo pede, sempre inutilmente, que todos os passageiros permaneçam sentados até a total frenagem da aeronave, a sensação que se tem é a de que estamos naquelas brincadeiras de acampamento em que o monitor diz: "Quem ficar sentado é BI-CHÁ!", e todo mundo levanta ao mesmo tempo. Como se não bastasse, todo mundo liga o celular. Eu não sou especialista em aviação mas, por um mínimo de bom senso, se a companhia aérea me pede para só ligá-lo no saguão, não vejo por que não fazê-lo. Quando um cidadão liga o celular assim que o avião pousa, tenho que me controlar muito para não perguntar: "Por gentileza, o senhor é o Ministro da Fazenda? É o presidente da Vale do Rio Doce?".

    Ainda nesta toada de pensar sobre o sentido da vida, preciso contar uma conversa que tive com a minha querida amiga Ju Buchaim. Velha colega de Colégio Bandeirantes, ela esteve em Brasília para um reunião no Banco Central e me ligou um pouco antes para a gente colocar o papo em dia. Duas coisas que nós conversamos vêm me martelando desde então. A primeira foi um comentário: "Eu acho o Facebook a coisa mais estúpida do mundo, mas não consigo deixar de entrar nessa desgraça de meia em meia hora". Em outro momento, enquanto nos inteirávamos sobre a situação dos amigos em comum, ela fez o seguinte comentário: "Estou preocupada com o [Eduardo] Bodra. Ela não se interessa mais pelas pessoas. Ele me disse um dia desses: 'Eu não tenho mais interesse pelas pessoas. Ninguém agrega nada'". Os dois comentários, aparentemente dispersos, me marcaram porque tenho pensado muito sobre isso também. O Facebook, entendido num sentido mais amplo, de democratização da informação, de liberdade de expressar opiniões, divulgar idéias, etc... realmente deveria ser uma coisa mais interessante do que é. Cada vez que entro no Facebook, me perdoem todos, acho as pessoas cada vez mais desinteressantes. E me solidarizo com meu amigo Eduardo Bodra  que, apesar da fachada durona, sempre foi um sensível e irônico filósofo na mesma busca  insensata pelo tal do sentido.

    Fato é que comigo existe alguma coisa extremamente errada ou extremamente certa. Todos os dias quando acordo (para citar o Renato, que era chato, afinal de contas estou em Brasília e passeio no Parque da Cidade, onde a Mônica ia de moto e o Eduardo de camelo), busco um sentido nas árvores e nos gramados da capital, nas músicas do Rush e do Milton Nascimento que ouço obsessivo em busca de inspiração, chego feliz ao prédio imponente do BC, onde me sinto acolhido e tento, sem muito sucesso, ter alguma idéia genial para revolucionar o monitoramento do risco de mercado nos bancos brasileiros. Não tenho mais grandes pretensões de carreira ou de sucesso financeiro. Sexo para mim não tem mais  do que 40% da importância de dez anos atrás. Tenho um certo senso de aposentado a trinta anos de me aposentar. Me lembro de um dos sermões do velho reverendo Roberto Lessa, em alguma igreja presbiteriana da periferia de São Paulo, onde ele dizia, inflamado, para uma audiência de no máximo vinte pessoas, que os valores do sucesso, do dinheiro e do poder eram prepoderantes nas "igrejas" atuais e explicava como isso não tinha nenhuma relação com o que Jesus havia pregado. Talvez o fantasma dele me persiga mais do que eu imagino. Talvez o meu ateísmo seja o Deus dele escrevendo certo por linhas tortas.  

25.9.11

As cores de Machado

Esta semana me irritei com a notícia: a Caixa Econômica Federal retirou do ar uma campanha publicitária onde o ator que representa Machado de Assis é branco.



    Mas, antes de entrar no mérito da discussão, fiquei pensando sobre o porquê da minha birra com qualquer tipo de "esquerdismo" estar cada dia pior. Quando me atacam estas ziquiziras, logo me vêm à mente memórias da campanha de Lula em 1989, da campanha para vereador do meu pai e suas idéias, sua história contra a ditadura dentro da igreja presbiteriana, da minha paixão adolescente e sincera pelas "causas sociais". Dizem alguns que todo cara inteligente é comunista na adolescência e ultra liberal quando cresce. Assim de cabeça me lembro de Pérsio Arida (Obs: ver seu depoimento em recente edição da revista Piauí - imperdível), Maílson da Nóbrega e  - o clássico - Paulo Francis. Eu deveria estar orgulhoso, talvez, não preocupado. Fato é que estou, e os trinta anos pela frente no Banco Central certamente só me farão piorar.

    Um certo fato me assombra: o famigerado elitismo dos Themudo Lessa. A consciência plena da existência deste mal sutil na família do meu pai surgiu por acaso, durante uma feijoada, batendo papo com meu tio Renato, irmão mais velho do papai. Foi uma epifania. Após mais uma de nossas longas e inúteis discussões sobre a superioridade de Corinthians ou São Paulo, perguntei ao meu tio como ele tinha virado sãopaulino. Para minha surpresa, veio uma história ironicamente fantástica. Acontece que na rua Cardeal Arcoverde, lá pelos anos quarenta ou cinquenta, circulava um lixeiro negro em sua carroça. O pequeno Renato Themudo Lessa veio a ficar amigo do filho deste senhor e se divertia à beça circulando por Pinheiros na companhia dos dois. E este lixeiro negro era são paulino doente e foi o responsável pela mais terrível mácula de nossa família até os dias de hoje. Brincadeiras à parte, fiquei fascinado pela história e perguntei, não sei por que: "Mas e aí, que fim levaram os dois?". E o tio Renato respondeu: "Não faço a menor idéia. A tia Hermínia, com aquele elitismo típico dos Themudo Lessa, um dia me pegou circulando com o lixeiro e meu deu uma sova daquelas!".  Minha imagem de infância da tia Hermínia é a de uma doce velhinha, professora aposentada, simpaticíssima e muito culta (uma imagem provavelmente justa, diga-se de passagem). Contudo, não tenho nenhuma dificuldade em imaginá-la reprimindo um sobrinho por circular lépido e fagueiro com lixeiros negros pela Cardeal Arcoverde.

    Nos raros momento em que me reúno com esta família, sinto uma alegria enorme, sincera. Admiro todos, pelas pessoas que são, existe um amor sincero entre nós, uma coisa rara numa família tão grande. No entanto, é muito difícil negar a força do nosso elitismo. Não necessariamente pela riqueza financeira, mas por serem todos saudáveis, bem-sucedidos, competentes profissionais, morarem em bairros nobres, conversarem sobre qualquer assunto e coisas do tipo. Um membro militante do PSTU classificaria minha família como um bando de neoliberais. Nenhum de nós se casou com um negro ou uma negra, assumiu-se homosexual ou sofreu qualquer tipo de discriminação (Ainda. Espero sinceramente que qualquer dos eventos um dia aconteça). Talvez assim sejam as famílias de classe média alta de São Paulo. E, com certeza, essa experiência de alguma maneira me "auto-descredencia" para exprimir argumentos claros como água na minha cabeça.  

    Voltando, finalmente, à campanha publicitária da Caixa Econômica, confesso estar sem paciência para escrever de novo minhas opiniões sobre como a questão racial é tratada no Brasil. Já falei sobre o assunto neste mesmo blog (http://travessiadoiata.blogspot.com/2010/04/o-racismo-e-as-palavras-magicas.html). Considerando que isto é um blog e não uma tese de mestrado, prefiro contar o que me passou pela cabeça desde o evento do comercial, muito mais engraçado e interessante. A primeira coisa foi um episódio, aliás o primeiro da primeira temporada, do seriado americano "Boston Legal". Uma mulher negra aparece querendo contratar o escritório de advocacia para processar os produtores de uma peça de teatro que não escolheram sua filha de oito anos para o papel principal. Alegava que a menina era a melhor candidata e só não fora escolhida porque o papel, no roteiro original, era de uma menina loira de olhos azuis. No final, o juiz dá ganho de causa aos protagonistas. Contudo, e isto faz da série muito interessante, não fica claro ao longo do episódio se o juiz deciciu pelo fato da menina ser negra ou pelo fato dela ser a melhor.

    E a melhor parte (o clímax é sempre interessante quando, ainda que na tentativa,  é levado à música ou ao texto) deixei pro final. Tenho a sorte de sentar numa baia rodeada de pessoas interessantes no Banco Central. Uma delas, João Rodrigues, ouviu minhas lamúrias sobre o comercial da Caixa e começamos a conversar sobre o assunto. Após uma interessantíssima discussão, sem discordar ou concordar, ele me encaminhou este texto do crítico literário americano Harold Bloom sobre Machado de Assis.

    "Machado de Assis is a kind of a miracle, another demonstration of the autonomy of literary genius in regard to time and place, politics and religion, and all those other contextualizations that falsely are believed to overdetermine human gifts. I had read and fallen in love with his work , 'The Posthumous Memoirs of Brás Cubas' in particular, before I learned thar Machado was a mulatto, and the grandson of slaves, and this in a Brazil where slavery was not abolished until 1888, when he was almost fifty. Reading Alejo Carpentier, I first wrongly assumed that he was what we call 'black'. Reading Machado de Assis, I first wrongly assumed that he was what we call 'white' (...). Carpentier, in 'The Kingdom of This World', writes from what we now regard as a black perspective. Machado, in 'Posthumous Memoirs', ironically adopts a rather decadent Portuguese-Brazilian white perspective."  

    Com severa falta de integridade intelectual e irresponsabilidade, típica da esquerda, o site do PSTU (http://pstu.org.br/opressao_materia.asp?id=13380&ida=18) comparou a campanha publicitária da Caixa às bizarras teorias do final do século XIX e início do XX que atribuíam à raça negra um fator de depreciação à evolução da humanidade. Mas foi curioso, ao ler esse site, a menção de que o comercial da Caixa estava "radicalizando a conhecida negação que Machado fazia de sua própria negritude".

Ao falar sobre a influência do escritor irlandês Laurence Stern sobre Machado, Bloom ressalta:

" (...) This is not to deny originality and criative zest to the Brazilian master, but only to remark that Stern's spirit freed Machado from any merely nationalistic demands that his Brazil might have hoped to impose upon him".

    Não conheço a biografia de Machado de Assis suficiente bem para afirmar se ele negava ou não sua "negritude". Aliás, "negritude" é uma palavra que me remete ao fato de alguns negros tentarem imitar tudo o que os brancos fazem de pior: editar revistas idiotas de moda nas bancas, participar de "Reality Shows", ter bandas toscas de pagode, um protagonista na novela das oito  ou - o supra sumo - candidatar-se a senador pelo PT. Suponho que Machado tivesse preocupações um pouco maiores. Talvez ele fizesse parte de uma espécie de elite negra, a mesma que comprava escravos logo após conquistar a alforria, fato comum e convenientemente esquecido da história do Brasil. Ou, o mais provável: ele foi um mestiço, como somos todos nós brasileiros desde antes de 1500, cuja obra fala de questões humanas e universais e faz sentido em qualquer tempo ou lugar. Se ele estivesse no céu e assistisse um comercial da Caixa onde um anão japonês albino com cabelo tingido de loiro o interpretasse, viraria para São Pedro e daria uma boa risada.

13.7.11

Paty nula

(Preclaros leitores, isto é um conto, uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes ou fatos reais, culpem a mente perturbarba deste que vos fala, ninguém mais. Sem mais, o autor)

Não me lembro da primeira vez que conheci Paty. Mas era com "y". Fundamental. Pode ter sido na cantina, no pátio, nos intervalos das aulas, sei lá. Sei que foi. Quando vi ela estava lá, aparecia nas festas, nas fotos, ria das conversas de bêbado. Paty não era feia, nem bonita. Paty era paty. Em São Paulo a mobilidade era limitada pela boa vontade dos pais, pela idade adolescente. Perversão era beber, na falta de mais mulheres aptas a ouvir e curtir Metallica e Megadeath. Talvez os pais destas mulheres as mantivessem presas, presas de nós, das nossas vontades daquela época. Eu faria o mesmo hoje, velho suficiente para lembrar da Paty, se filha tivesse. Imagine deixar minha pequena imaginária nas mãos daqueles com quem eu andava, de jeito nenhum, ou talvez não, talvez eu já estivesse alto com algumas latinhas e elas fossem suficientes para deixar, vai filha, agrade um menino como eu, naquela época não tive quase ninguém. Talvez injusto. Eu era bonitinho lá, tive aventuras com meninas mais interessantes que Paty. Mais sensuais, mais inteiradas, mais mulheres, tinham sorrisos mais cativantes. Para parar com isso, posso dizer que eram mais gostosas. Gostosa vai além da gostosura.

    Vira e mexe cruzava Paty no recreio. Dava um beijinho forte, às vezes um abraço. Ela tinha um cheiro bom, uma mistura de colônia de vó com batom. Quase dava tesão. Era um colégio rigoroso, só os mais aptos sobreviviam. Três recuperações era o máximo permitido. Sabíamos desde o primeiro bimestre quem eram os prováveis degolados. De Paty nunca soube. Sei que se formou. Creio que fez administração com ênfase em alguma coisa. Mas isso não importa agora. Estou ficando velho, cotando planos de previdência, o Facebook está bombando com recordações. Preciso de Paty ali, na escola. Se um dia souber com quem ela se casou, quantos filhos teve, o cargo e o salário, tudo vai por água abaixo. Não, nada disso. Quero ficar estanque nos salões de festa da classe média, cheios de cabeludos que não pegavam ninguém e saíam chapados cantando "from whom the bell tolls!".

    Essas memórias de Paty são no fundo falta de espelho. Quem sou eu, afinal?  Dos amigos antigos a gente costuma fazer agrupamentos, como no messenger. Só que não é por faculdade, escola, firma ou família. É pelos brothers, os brothers que foram para o lado negro da força, as pérolas e os nulos. As pérolas têm uma escala que varia dos que foram brothers por um curto período até os que eram conhecidos dos corredores, não amigos, mas interessantes. E os nulos são os nulos. É mais que zero. São como as barras de ouro do Silvio Santos.  Valem mais do que dinheiro. 

    Encontros de amigos antigos, virtuais ou não, são deliciosos e cruéis. Algumas gostosas continuam gostosas, outras barangaram. Algumas feinhas melhoraram e lamentamos as chances perdidas. Tem espaço até para amores autênticos, livres de julgamentos, não prosperaram. Cheios de antigos namoros e beijos hoje constrangedores na rede. Piadas internas mil. E quem lembrou da Paty? Meu Deus! Hoje basta alguns cliques no curtir e adicionar! Onde está você, Paty, que não respondes, não tuíta, no reply? Morro de curiosidade de saber como estão aqueles cabelos, nem lisos nem crespos, nem presos nem desarrumados. Hoje posso dizer sem medo: queria ter a Paty, sensual e peladinha, mais do que sempre quis a Daniela morena.

    Depois de meio velho, visto quase tudo, as taras ficam mais exigentes. Queremos surpresas, reações inesperadas. Se Daniela morena aparecesse aqui hoje, na minha casa, por um milagre, cheia de recordações e de tesão, eu provavelmente não teria nada a oferecer. Um pinto médio, uma carreira razoavelmente bem sucedida, um apartamento meia-boca, um carro com quatorze prestações a pagar e uma vontade de conhecer Rondônia e tocar clarinete tão grande quanto a te trepar.  Sabe quem eu quero de verdade? A Paty. A Paty nula. De sutiã rosa, calcinha roxa de rendinha, brinquedos eróticos, lubrificantes e sabe-se lá o que mais.

    E o pior. Falta a revelação. (Seria no meio do orgasmo, prolongando-o). Paty nula não veio à Terra para anular. Veio para nos redimir de dois mil e onze anos de fé. Nunca entendi a mensagem de humildade do cristianismo, de um Deus nos enviando seu filho carismático, milagreiro, popular. O meu verdadeiro Deus enviaria a Paty nula. Comum, insignificante, despercebida, sem ambições. Eu, por um milagre, lembraria dela como hoje. E faríamos de tudo, na cama, na mesa, no banho, sem pudores, até a a grande revelação. Eu, Paty nula, sou quem você sempre quis. E você, Paty nula, é o verdadeiro filho de Deus.

30.6.11

Os gênios também vão ao banheiro

Sabe aquele velho chavão do "se você se sente inferior à Gisele Bunchen, imagine que ela está no banheiro fazendo um cocozinho?" Pois é, todo mundo faz uma cagada de vez em quando. Esta idéia está no meu colo desde a compra de um livro no aeroporto do Rio, antes de voltar pra casa no último feriado. Chama-se "Guia politicamente incorreto da história do Brasil", do jornalista Leandro Narloch. Quase deixei de comprar quando vi que ele era ex-repórter da Veja, mas a orelha me convenceu. O livro é divertido especialmente para um neoliberal como eu. Vai na toada "Zumbi também tinha escravos", "Santos Dumont não inventou o avião", "João Goulart favoreceu as empreiteiras". Mas o capítulo lido ontem me proporcionou uma deliciosa epifania. Nunca antes na história deste blog eu colei um trecho de outro autor. Mas ele traduziu em palavras com perfeição um incômodo presente desde minha infância: o ódio por desfiles de escola de samba. Finalmente entendi o porquê. Foi a formiguinha tirando o espinho do pé do elefante.

"(...) Na maior parte da história do Brasil, o carnaval foi uma algazarra deliciosamente sem noção.

Mas suponha que, de repente, um ditador bem metódico, militar e fascista, um ditador como o italiano Benito Mussolini, (...), tivesse o direito de regular essa bagunça para torná-la orgulho da nação. Como seria o Carnaval organizado por Mussolini?

Imagino que não haveria personagens trocados, arremessos de bola de cera ou guerrinhas d'água. Como em um desfile patriótico, os carnavalescos marchariam em linha reta, com tempo metodicamente marcado para cada evolução. Passariam diante das autoridades do governo e de jurados que avaliariam a disciplina, o figurino e a média de acertos dos grupos, dando notas até dez. A organização do Carnaval permitiria apenas músicas edificantes e patrióticas. Para ressaltar a pátria e deixar de fora a influência estrangeira, a melodia só poderia ser executada por instrumentos considerados da cultura nacional."

Depois dessa fiquei pensando como seria se eu escrevesse o "Guia politicamente incorreto do cinema americano". Pegaria meus diretores favoritos (Kubrick, Spike Lee...) e sairia em busca de panos para manga. O capítulo mais fácil seria o de Tim Burton. Ainda sou fã, seus acertos superam os erros de longe na balança. Mas ele conseguiu, com a ajuda da Disney, avacalhar duas das histórias mais queridas da minha infância. A primeira é o filme "A fantástica fábrica de chocolate" ("Willy Wonka & The Chocolate Factory" - 1971). Quando era pequeno, lá no velho edifício Ajaccio, no Paraíso, tinha um amigo chamado Guilherme. Sua família passava por vacas gordas e foram os primeiros do condomínio a ter computador e vídeo-cassete. Naquele aparelho de duas caixas, do tamanho da estante inteira da sala, provavelmente assistimos juntos esta versão original do filme, gravado da Sessão da Tarde, estrelado pelo genial Gene Wilder, umas trezentas vezes.



Gene Wilder e os Umpa-lumpa

De fato, a magia do filme começa pelo próprio Gene Wilder. Ele me lembra da diferença entre um comediante e um cômico. Quando Ronald Golias morreu, o fato foi comentado na rádio CBN por Heródoto Barbeiro, Xexéo e Carlos Heitor Cony. Este explicou a diferença. Um comediante é um ator que, para fazer comédia, depende de um ótimo texto e dos companheiros de cena. Já o cômico é engraçado por si só, basta aparecer. É o Chaplin. Para mim, basta lembrar do Didi com peruca de Maria Bethânia para rir sozinho. Ou de Gene Wilder pelado no quarto com Kelly LeBrock, cobrindo o pinto com o travesseiro de seda branco, em "A dama de vermelho" ("The woman in red" - 1984) . Sem contar sua interpretação no romance com a ovelha em "Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar". Dispensa comentários.


Dididibetânia

Muitas outras coisas fazem da "Fantástica fábrica" um filme inesquecível. Sempre me fascinou a quantidade de mistérios que ficam em aberto. Quem era Willy WonKa e como criou a fábrica mágica de chocolate? Quem são os umpa-lumpa, anões de cabelo verde, antipáticos e transmissores de lições de moral musicadas? O que vai acontecer com as quatro crianças mimadas? Morreram, ficaram aleijadas para sempre? O que vai acontecer com a fábrica quando Charlie assumir? O filme termina com todas essas maravilhosas questões em aberto, cumprindo o papel primordial de um filme infantil: dar asas à imaginação, provavelmente o chavão mais repetido e menos (decentemente) cumprido da história da humanidade.

Pena que Tim Burton foi mexer com o que não se mexe. Ele deveria ter feito como meu amigo Fábio Simplício, o "Minas", quando dizia com seu jeito de mineiro do brejo: "Não vou mexer com isso não...". Quando um cidadão como Milton Nascimento grava uma música como "Beatriz", qualquer outro cantor tem que pensar quatorze vezes antes de gravar a dita cuja. Pena que o mundo seja cheio de Anas Carolinas. Burton, não satisfeito em criar uma versão mais chata, vomitando tecnologia e com músicas piores, resolveu acabar com o melhor da primeira versão: os mistérios. Primeiro, Burton teve a brilhante idéia de explicar a origem dos umpa-lumpa. Criou um país ridículo e inúmeras justificativas. E colocou a cereja no bolo. Depois do sofrível Willy Wonka de Johnny Deep entregar a fábrica para Charlie, o diretor resolveu explicar a origem do personagem. O criador da fábrica dos chocolates mais gostosos do mundo só surgiu porque seu pai era um dentista neurótico que nunca o deixou comer doces. Gênio! Esfaqueou meu filme preferido de criança com uma dose letal de psicologia de botequim.

Melhor do que ler tudo o que escrevi, é perceber que Burton esqueceu de prestar atenção na letra da música do vídeo abaixo. Chama-se "Pure imagination".

"Hold your breath, make a wish, count to three
Come with me
and you'll be
in a world of pure imagination
Take a look
and you'll see
into your imagination
We'll begin
with a spin
traveling in the world of my creation
what we'll see
will defy EXPLANATION"

http://www.youtube.com/watch?v=RZ-uV72pQKI

(A melhor cópia do youtube não deixa incorporar no blog)

Mas Disney e Burton ainda não estavam satisfeitos. Afinal, avacalhar um filme relativamente bem-sucedido de 1971 não era lá essa coisas. O pessoal resolveu mexer com a mais notória obra de magia e loucura da literatura infantil. "Alice", obviamente. Confesso que comecei a ver o filme empolgado, principalmente depois de descobrir que a atriz principal era a australiana de origem polonesa (segundo o Wikipedia) Mia Wasikowska. A primeira vez que a vi foi na série da HBO "In treatment" (recomendo fortemente). Confesso que ela me fez chorar muito mais do que um machão de trinta e muito poucos anos deveria. Mas, eis que senão quando (como dizia o velho Lessa), a história me vem com mais uma explicação. Aquela Alice mais velha cresceu pensando que sua primeira aventura, aquela do livrinho de Lewis Carroll, não passou de um sonho e agora ela voltou com a missão de liderar as forças do bem do país da maravilhas contra as forças do mal. Gênios! Gênios duplos! Lewis deve ter virado um peão no túmulo. Burton e a Disney transformaram sua obra no supra-sumo da mediocridade: o maniqueísmo estadunidense.




Nem mesmo a linda e talentosíssima atriz Mia Wasikowska salvou a "Alice" de Tim Burton.


Acho que deu por hoje. O primeiro capítulo deste compêndio já está pronto.

PS: Saquei momentos depois de publicar. O filme faz 40 anos este ano! Então fica um parabéns duplo para duas pessoas que eu amo muito e que se tornaram quarentonas este ano: Willy Wonka e minha irmã, Juliana Lessa.

14.4.11

Avatares no poder

Estou me convencendo de que o segredo da felicidade é ficar sem notícias. De todos os tipos, do jornal nacional, do Realengo, da Líbia e do vizinho. Até da família. Invejo tanto hoje os filmes onde um cavaleiro destemido saía pelos Pirineus para levar ao barão a notícia da tragédia. Vinte dias ou mais. Estou com fobia de ligar a televisão de manhã, enquanto passo o café. E de ligar o rádio do carro no caminho ao trabalho. Cada vez mais não quero saber quem morreu, quem foi estuprado, quem roubou, quem chacinou crianças. Prefiro fingir que vivo numa fazenda no meio do nada e o Banco Central é simplesmente a vaca que tenho de ordenhar para prover meu suste­­­­nto. Quem sabe assim tomaríamos menos remédios, teríamos menos dor de cabeça e teríamos mais tempo para apreciar o genuinamente inútil.

E a carência afetiva, que em mim cresce irônica com o tempo, se confunde com a consciência da liberdade, a certeza de que, uma vez superadas as restrições financeiras, praticamente não existem limites, mesmo com as restrições ao crédito impostas pela instituição em que eu mesmo trabalho... O crédito é a mágica de pagar um preço para usufruir hoje o prazer antes possível apenas no futuro. Mesmo custando 11,75% ao ano (mais o spread bancário), parece baratíssimo diante do bombardeio diário de notícias. Quem vai se preocupar com o endividamento diante da possibilidade de ser esfaqueado no meio do supermercado, enquanto se escolhe a marca do macarrão? Ou diante da constatação óbvia de que, ao ver a Dilma reunida com os outros quatro represantantes das economias emergentes, nosso planetinha não vai aguentar o tranco de mais dois bilhões e meio de pessoas comprando Ipads, carros e comendo três hambúrgueres picantes por dia?

Dizem que Deus deu resignação ao meu pobre coração, mas ela não me consola, e acordo ansioso todos os dias, querendo uma coisa que não existe e não sei o que é. Não passo um dia sem viajar que o que eu vejo na verdade não existe, eu sou um software controlado em algum lugar por um outro perdido como eu que também liga seu videogame e foge da própria realidade. Talvez seja um Deus apenas, ou talvez ele empreste o jogo a um amigo do lado e esse outro Deus decida mudar o rumo da missão. Essa troca seria o livre arbítrio. Um pensamento terrível, mas que pelo menos me isenta de responsabilidade pelo noticiário diário.

Morar em Brasília, mesmo que a pessoa seja apenas um motorista de ônibus ou um mendigo, passa a sensação intensa de estar mais próximo do poder. Poder é a capacidade de alterar a realidade de maneira mais intensa, mudar de um jeito que transcende a própria vida. Ter poder é alterar a vida das outras pessoas. Quando visitei o Congresso Nacional, fiquei profundamente decepcionado com o tamanho da sala da câmara dos deputados. Desde pequeno, quando acompanhei pela televisão a vitória de Sarney sobre Maluf, tinha a imagem de uma sala circular colossal, imponente, onde multidões de debatedores decidiam o futuro do país. Quando lá entrei, vi uma saleta de merda, cheirando mofo, com botões com cara de década de setenta nas bancadas. Pensei: "Porra, foi aqui que o Ulysses falou 'Viva a democracia, viva o Brasil!'"?

Talvez seja a mesma sensação da criança que acha um lugar enorme e, depois de lá voltar anos depois, acha normal ou pequeno. Essa foi a sensação que tive ontem, quando acompanhei minha amiga Louise no lançamento da autobiografia do Maílson da Nóbrega, escrita por ela em parceria com o biografado. Quando José Sarney chegou para pegar seu exemplar, fiquei surpreso ao ver aquele velhinho, frágil, sozinho, chegando na livraria Cultura para pedir seu autógrafo. Claro que era ilusório. Mas Sarney é um tremendo dum avatar. Aquela carcaça é frágil, mas ele consegue operar corpos, mentes e todo tipo de movimento para fazer o que quer. Brasília torna mais clara a constatação de que as pessoas que estão no poder são tão medíocres e frágeis quanto qualquer um de nós, provavelmente muito mais... E acho que não é tão difícil assim chegar lá. Concordo com meu amigo Rennó quando diz que os que não gostam de política estão fadados a obedecer aos que gostam. Só por isso não perco a esperança na internet e mantenho este blog. Ao mesmo tempo que me bombardeia de neuroses, acredito que seja um instrumento para se chegar ao poder, e para desmistificar essa caminhada a ele. Mesmo que seja tudo uma ilusão, uma passagem do software de um jogador para outro, que por suas vezes são avatares de outros e assim pode ser que seja o Universo...

27.2.11

Rush

A música faz parte torta da minha vida. Desde pequeno aprendi a gostar de tudo. Minha mãe sempre tocou violão de uma maneira muito pessoal, espontânea, intensa, amplificada por sua voz grave e poderosa. Uma das memórias mais fortes da minha infância é uma gravação linda que ela fez da música "Folhetim" do Chico. A frase "Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim" me assombrou de uma maneira saudável por anos a fio. O velho Lessa também era músico, tinha ouvido absoluto. Reza o papeado familiar que a Dona Marina Mendes Leite, uma das mais conceituadas professoras de piano de São Paulo, quis tirá-lo da escola ainda pequeno para que ele se dedicasse exclusivamente ao instrumento. Meu avô não deixou. Talvez a repressão familiar ao exercício das artes inflingida aos dois em algum, ou alguns, pontos da vida me deram a oportunidade de conhecer as mais diferentes formas de música na coleção de vinis que até hoje habita o armário de cortiça da rua Afonso de Freitas. E também de estudar o instrumento que quisesse, na hora que bem entendesse. Passei por inúmeros professores, instrumentos e escolas, todos excelentes. Mas, como diria Salieri ao crucifixo pregado na parede de seus aposentos num dos meus filmes preferidos (Amadeus, de Milos Forman), Deus não me presenteou com o talento de Mozart. Aliás, com o talento de ninguém. Pelo menos para a música.



Amadeus é um filme de 1984. Portanto, Salieri me ensinou muito cedo o quanto é doloroso abrir mão de algo que se ama e que não te ama de volta. Tal como ele , não esmoreci e fui em frente. No Colégio Bandeirantes fiz os amigos que tenho perto até hoje. Muitos gostavam de música e tocavam também. Tocamos muito violão no "borrachão", o antigo pátio da escola onde um dia se dormiu durante aulas cabuladas e tocou-se Metallica e Red Hot Chilli Peppers. Hoje a admistração tucana transformou o borrachão numa quadra de futebol de salão como outra qualquer. Sorte dos pais leitores da Veja. Tive bandas durante e depois desse tempo. Hoje finalmente desisti. Conversei sobre isso com o Rennó recentemente, quando ele me visitou aqui em Brasília no final do ano passado. Ele é baterista e fez parte dessa história toda. Disse a ele que chegou a hora da resignação. Que na minha opinião, daquela turma, só Giana e Alan foram abençoados pelo talento. Nós outros somos, em maior ou menor grau, Salieris. Aí o Rennó retrucou com razão que isso não era motivo pra parar de tocar. Concordei. O mundo não é feito de Mozarts. Não é à toa que o filme "Amadeus" termina com Salieri abençoando e redimindo todos os medíocres do mundo. O mundo pertence a eles, quão melhor estaríamos se assim não fosse? Parar de tocar pra mim foi, antes de um exercício de vaidade, uma tentativa de encontrar o que me faz feliz.

Para chegar na explicação do titulo desta postagem, preciso dizer que deixar de tocar instrumentos não significa deixar de gostar de música. Mais especificamente de ouvir música. No mundo de hoje a música virou um "fundo". Uma coisa que fica atrás, segundo plano. Mesmo tendo sido sempre um músico medíocre, ficava puto naqueles momentos da festinha ou do churrasco em que um amigo bêbado sacava um violão e gritava "Aí, galera, agora o Iatã vai tocar um violão pra gente!". Dez segundos depois tava todo mundo berrando, xavecando a mulher do lado e ignorando completamente o que eu estava fazendo. Em resumo, queriam que eu ficasse fazendo "fundo musical". Pô, se é assim, bota um CD. Sempre que eu dizia isso me tachavam de estressadinho e estrela. Eu respondia: Ou você senta aí de perninha cruzada, fica escutando ou canta junto, ou não me encha a paciência.

Esse tipo de comportamento me faz entender porque só hoje, com quase trinta e cinco anos, eu começo a entender, com profundidade, algumas músicas que eu escuto desde a adolescência. A gente não foi educado pra entender música, só pra ouvir, preferencialemente de fundo pra outra atividade. Isso vale pra qualquer forma de arte, obviamente, mas no meu caso a música deu a epifania. Tenho ouvido muito Rush, uma banda de rock progressivo canadense que o George, o Peter e a Giana me fizeram gostar nos tempos do Bandeirantes. Nunca me esqueço de um dia na casa da Giana, eu devia ter uns dezesseis anos, estávamos estudando para alguma prova e num dos inúmeros intervalos para descansar, o irmão dela nos chamou para ouvir um disco do Rush. Ela, com seu talento Mozartiano, me mostrava como cada parte tinha um andamento diferente, as mudanças de intensidade, como a bateria respondia a cada momento da proposta da música. Esse dia não saiu da minha cabeça porque, quando fiz um curso de escrita criativa em São Paulo, a professora colocou alguns vídeos e trechos de filme para explicar a importância (ou não, para os modernosos) da fórmula introdução-desenvolvimento-clímax-conclusão num conto ou romance. Nessa hora eu lembrei da "YYZ" do Rush, dos meus amigos, da adolescência e de como aquele final de solo da música, para quem sabe apreciar, pode ser um clímax maravilhoso. Dependendo da parceira, até melhor do que o do sexo.



PS: Postagem em homenagem ao amigo Caio Macedo Carvalhal, um dos maiores fãs do Rush que o Colégio Bandeirantes já conheceu.

22.1.11

Epístola ao Sr. Lovric

Prezado Sr. Lovric,

Venho por meio desta, humildemente, mandar um muito obrigado.
Nesta noite solitária de sábado, aqui na região nova-rica da capital federal, finalmente encontrei a serenidade para me suportar, abrir meu novo lap-top, devidamente financiado pela generosidade do governo federal, e ler as coisas que realmente importam. Leia-se a leitura: o meu próprio blog, o seu, as letras de música do Rush e do Pink Floyd, o Tchecov, o Shakespeare, e tantas outras manifestações de pessoas que emprestam sua testa ao que dá a esta nossa existência um mínimo de sentido.
Você, Sr. Lovric, tinha tudo para ser um mero amigo de um amigo. Como naquele episódio do Seinfeld em que o George se desespera ao perceber que teria de ir sozinho ao cinema com a Elaine. Alguns amigos de amigo só funcionam com a presença do amigo. Sem o dito, desespero certo. Felizmente, ao invés de pedirmos um sanduíche de atum numa cafeteria e ficarmos falando mal do Mendes (como fizeram Elaine e George com o Seinfeld), construímos uma grande amizade baseada em poucos encontros e enorme empatia.
Seus personagens, o Capitão São Paulo, o Gílson e, especialmente o Jimmy Jazz, seu alter ego, papel de parede deste meu lap-top, me mostraram que é muito fácil soltar nossa criatividade para o mundo. Requer um esforço espiritual, é certo, mas poucos recursos materiais. Eu vi o óbvio, por sua causa: é quase uma obrigação fazer isso. Com tanta gente, com tanta grana, fazendo tanta merda, plantar nossas hortinhas certamente fará o mundo respirar melhor.

Sem mais, subscrevo-me.

Iatã Lessa

Não entendeu? Entre no túnel do tempo do Blog Show: http://travessiadoiata.blogspot.com/2009/03/mudanca-de-proposta.html

A réplica:

Fala.

Muito me alegra, a epístola, por motivos diversos. O primeiro, por aprender que lograste êxito em conceber a simples equação da paz de espírito: fazer o teu negócio, independente de qual seja e de resultado. Em rápida análise, qual energia pode fazer melhor ao universo que a de um corpo que faz bem o seu trabalho? Pode-se discutir que alguns destes corpos ou desse trabalhos sejam caóticos, mas ainda assim, o universo não é ying e yang, como antigos perceberam há incontáveis milênios? Logo, a única energia realmente negativa provém da inação, que em nosso tempo, se apresenta em forma de submissão à sociedade de massas e sua intolerável boçalidade. Já houve outro demônio que excercesse seu domínio entre tantos, em simultâneo ?

Muito me alegra também saber que Larry David e Jerry Seinfeld fizeram seu trabalho bem a ponto de permitir que alguém nascido no Paraíso e residindo no planato tomasse a obra como paralelo para sua vida. Nada mais claro para demonstrar que apesar dos nosso azares, a sorte também sorri, e nos afasta de nos tornarmos Constanzas, destino ao qual a maioria, pela pequenez de espírito, também sucumbe. É difícil conhecermos almas dotadas de empatia, mas todos as havemos, e saber cultivá-las é que faz a diferença.

Segue trabalho inédito do Capitão São Paulo. Não imagino ninguém cuja opinião pudesse ser mais valiosa. Importante que saiba que,estou disposto e esperar o feedback tanto quanto necessário. Dias, meses ou anos. Temos tempo.

Asseguro tudo está sendo feito para dar vida ao Capitão, Gilson e Jimmy o mais breve possível. Acontecerá. Talvez em meses ou anos. O importante é que o comprometimento seja diário, como tem sido.

Como dizem mais ao leste de onde nascemos: "É nóis! "

L

15.1.11

Brasília, segundas impressões. E as praças

Aqui da minha nova janela se vê uma praça. Quando aluguei esse apartamento tive uma sensação ruim de estar alugando uma coisa brega e cara. Mas em Brasília tudo é muito: a gasolina, o aluguel, os imóveis, o supermercado, o almoço e o descaso. O preço aqui independe do bom gosto. Para um paulistano convicto, filho de um maluco que adorava levar o filho pequeno ao centrão e mostrar ao vivo toda aquela realidade "blade runner" da praça da república, Brasília causa um estranhamento. Ao contrário de São Paulo, Brasília não surgiu da economia, não evoluiu das fazendas de exportação de café. Foi evocada pela política, com muito cimento e nenhuma calçada. Pedestre aqui é barata. Uma das minhas neuroses desenvolvidas após os 34 anos é o medo de ser atropelado e ser obcecado por atravessar somente nas faixas de pedestre. Isso talvez explique o fato de eu ainda não ter visitado o memorial do Juscelino, aqui pertinho de casa. Tenho preguiça de pensar no caminho a seguir a pé e medo de pegar carrapato nos resquícios de cerrado que ainda sobrevivem no Sudoeste, a Barra de Brasília. É isso mesmo, o Sudoeste está pra a Asa Sul assim como Ipanema está para a Barra. E como a Barra Funda está para o Paraíso. E como o meu leitor está para quem implora pelo fim de analogias citadinas.

A praça do meu condomínio ainda é o que o mais me fascina. São Paulo não ajuda a incorporação das praças no imaginário. A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim só fariam sentido se fossem o mesmo cheiro de mijo, os mesmos canteiros toscos, o mesmos mendigos e o mesmo correio fechado com portas de aço rolante. A minha praça é a de Lages, em Santa Catarina, onde meu avô caminhava diariamente para encontrar seus pares e comprava o Estadão, que só chegava depois das três da tarde. No dia em que eu passei no vestibular ele desfilou aquele jornal até cansar. Justo, para isso servem as praças. Para encontrar os amigos, os vizinhos, conversar e sorrir. Quando anunciei que me mudaria pra o Sudoeste me alertaram: aí é lugar de madames e seus encontros de cachorrinhos de estimação. Talvez seja mesmo. Mas por enquanto estou gostando de ver a criançada brincando da janela. Fazem pouco barulho, como todo mundo em Brasília. Aqui o silêncio é mais valorizado. Um sonho que em São Paulo não existe mais. E as crianças, de longe, me dão uma paz duvidosa. Ao mesmo tempo que ajudam a esquecer a frustração de não ter tido filhos, também me lembram que criança de longe é uma delícia. Vai criar pra ver o que é bom. E aí me iludo achando que a minha vida é boa como está.

As praças de Brasília transcendem o conceito. Aqui dá pra ver o horizonte e tudo pode virar uma praça. Pena que num lugar que teve quatro governadores em seis meses fica óbvio o descaso. As gramas altas, o descuido com o lixo. Por mais lindo que seja ver o eixo monumental - essa foi a minha impressão ao visitar Brasília nos tempos de faculdade, num ônibus cheio de molecada chapada e curtindo a balada - agora como novo cidadão brasiliense, não posso deixar de ter uma certa raiva do Niemayer e Lúcio Costa. Estou determinado a ler mais sobre o assunto, tentar entender o que pensaram na época. Será que a empolgação do Juscelino com a indústria automobilística foi suficiente para convencê-los de que todo peão de obra teria um fusquinha em 2010? Nos primeiros dois meses por aqui estava sem carro e escrevi para o meu primo Edison: "Andar a pé em Brasília é como dirigir um Galaxy naqueles calçadões do centro de São Paulo. Pelo menos não dá multa. Ainda.".

Pensando bem, talvez eu esteja sendo injusto com os idealizadores de Brasília. Pensar uma cidade ampla, com espaço entre os prédios e as coisas longe umas das outras não é nada mal. Falta transporte público decente. É muito legal vir pra casa e ver um gramado sem fim dos dois lados da avenida. Especialmente pra mim que vivi num bairro onde cada centímetro era disputado a tapa. Já escrevi nesse blog a origem do meu ódio pelo barulho. Sempre houve uma obra por perto da minha casa, um barulho insuportável e um total desrespeito pelo descanso alheio. Mais legal ainda é pegar o carro e ir pra Goaiânia ou para Alto Paraíso, uma das cidades da Chapada dos Veadeiros. O GPS fica branco à esquerda e à direita. Totalmente vazio. Dá uma sensação maravilhosa, ver que o mundo ainda tem lugares vazios, a música da Terra ainda tem pausas.

PS1: Não tinha conseguido escrever nada desde que cheguei aqui. Esta postagem não está lá grande coisa, mas pelo menos saiu. O planalto central está começando a tomar conta de mim. Me lembrou do que a minha irmã me disse. Da importância de criar uma relação afetiva com tudo, com os lugares, com as pessoas, com as ruas, com as histórias. E com as praças, que espero nunca ver dar lugar aos arranha-céus.

PS2: Postagem em homenagem ao tio Bilo, uma das pessoas mais queridas que já conheci e que talvez não leia essa postagem hoje, mas certamente lerá em breve.