A única maneira de escrever um texto honesto sobre hoje é separar a
razão do coração. Num tempo brasileiro antigo, quando eu ainda não
desprezava artistas e intelectuais, ouvi uma manifestação que marcou
minha vida. O músico Jorge Mautner declamou uma poesia linda no meio de
um show do Gilberto Gil. Dizia algo mais ou menos assim: "Comigo a
anatomia ficou louca. Sou todo, todo coração!".
Uma das
principais razões pelas quais desprezo Dilma, Lula e o PT é a
hipocrisia. A dissimulação de governar treze anos em nome de um projeto
para favorecer os pobres e excluídos e entregar, como todos os dados
econômicos hoje comprovam, uma tragédia, uma fatura dolorida a ser paga
primordialmente por eles.
Na madrugada de hoje, à medida em que o
voto do último senador golpista se aproximar, meu coração vai ameaçar
tomar conta. Terei vontades de tomar um porre, abrir uma champanhe,
soltar rojão e correr para a praça dos três poderes para fazer um
bunda-lê-lê enquanto a presidenta e seus ministros descem a rampa.
Infelizmente minha razão ainda existe. Essa mala sem alça não cansa de
me lembrar de que o projeto hipócrita de poder foi aprovado e reaprovado
três vezes pela maioria dos brasileiros. Ainda concordo com o argumento
de Eduardo Jorge: se não formos capazes de enterrar o PT nas urnas, o
fantasma vai nos assombrar para sempre. Talvez não na forma de PT, ou de
Lula, pouco importa. O problema do câncer (e o petismo é um câncer) é
justamente sua capacidade de se metamorfosear.
Ao contrário da
opinião majoritária, acredito que não estamos acertando a Jararaca na
cabeça. Estamos fazendo uma coisa tosca e atabalhoada. A euforia pela
saída de Dilma corre o risco de ser coroada com uma pusta ressaca,
daquelas em que é difícil até abrir o olho.
O grande impichado
do processo político brasileiro não será Dilma, será René Descartes. O
que vivemos hoje é uma guerra santa, o enterro completo da razão. Não há
mais a menor preocupação com os fatos, só com versões. Uma suruba de
mentiras, uma festa de vídeos toscos e acusações infundadas no YouTube,
nas redes sociais e na TV Senado. Ver parlamentar brasileiro chamar
urubu de meu louro deixou de ser piada faz muito tempo. E isso vale para
a esquerda, para a direita, para o centro, para o norte e o sul.
Quando a razão dorme, dorme também a democracia. Rodamos e rodamos a
roleta por mais de trinta anos para voltar, por opção, ao velho PMDB do
Sarney. Durma-se com uma ressaca dessas.