30.6.11

Os gênios também vão ao banheiro

Sabe aquele velho chavão do "se você se sente inferior à Gisele Bunchen, imagine que ela está no banheiro fazendo um cocozinho?" Pois é, todo mundo faz uma cagada de vez em quando. Esta idéia está no meu colo desde a compra de um livro no aeroporto do Rio, antes de voltar pra casa no último feriado. Chama-se "Guia politicamente incorreto da história do Brasil", do jornalista Leandro Narloch. Quase deixei de comprar quando vi que ele era ex-repórter da Veja, mas a orelha me convenceu. O livro é divertido especialmente para um neoliberal como eu. Vai na toada "Zumbi também tinha escravos", "Santos Dumont não inventou o avião", "João Goulart favoreceu as empreiteiras". Mas o capítulo lido ontem me proporcionou uma deliciosa epifania. Nunca antes na história deste blog eu colei um trecho de outro autor. Mas ele traduziu em palavras com perfeição um incômodo presente desde minha infância: o ódio por desfiles de escola de samba. Finalmente entendi o porquê. Foi a formiguinha tirando o espinho do pé do elefante.

"(...) Na maior parte da história do Brasil, o carnaval foi uma algazarra deliciosamente sem noção.

Mas suponha que, de repente, um ditador bem metódico, militar e fascista, um ditador como o italiano Benito Mussolini, (...), tivesse o direito de regular essa bagunça para torná-la orgulho da nação. Como seria o Carnaval organizado por Mussolini?

Imagino que não haveria personagens trocados, arremessos de bola de cera ou guerrinhas d'água. Como em um desfile patriótico, os carnavalescos marchariam em linha reta, com tempo metodicamente marcado para cada evolução. Passariam diante das autoridades do governo e de jurados que avaliariam a disciplina, o figurino e a média de acertos dos grupos, dando notas até dez. A organização do Carnaval permitiria apenas músicas edificantes e patrióticas. Para ressaltar a pátria e deixar de fora a influência estrangeira, a melodia só poderia ser executada por instrumentos considerados da cultura nacional."

Depois dessa fiquei pensando como seria se eu escrevesse o "Guia politicamente incorreto do cinema americano". Pegaria meus diretores favoritos (Kubrick, Spike Lee...) e sairia em busca de panos para manga. O capítulo mais fácil seria o de Tim Burton. Ainda sou fã, seus acertos superam os erros de longe na balança. Mas ele conseguiu, com a ajuda da Disney, avacalhar duas das histórias mais queridas da minha infância. A primeira é o filme "A fantástica fábrica de chocolate" ("Willy Wonka & The Chocolate Factory" - 1971). Quando era pequeno, lá no velho edifício Ajaccio, no Paraíso, tinha um amigo chamado Guilherme. Sua família passava por vacas gordas e foram os primeiros do condomínio a ter computador e vídeo-cassete. Naquele aparelho de duas caixas, do tamanho da estante inteira da sala, provavelmente assistimos juntos esta versão original do filme, gravado da Sessão da Tarde, estrelado pelo genial Gene Wilder, umas trezentas vezes.



Gene Wilder e os Umpa-lumpa

De fato, a magia do filme começa pelo próprio Gene Wilder. Ele me lembra da diferença entre um comediante e um cômico. Quando Ronald Golias morreu, o fato foi comentado na rádio CBN por Heródoto Barbeiro, Xexéo e Carlos Heitor Cony. Este explicou a diferença. Um comediante é um ator que, para fazer comédia, depende de um ótimo texto e dos companheiros de cena. Já o cômico é engraçado por si só, basta aparecer. É o Chaplin. Para mim, basta lembrar do Didi com peruca de Maria Bethânia para rir sozinho. Ou de Gene Wilder pelado no quarto com Kelly LeBrock, cobrindo o pinto com o travesseiro de seda branco, em "A dama de vermelho" ("The woman in red" - 1984) . Sem contar sua interpretação no romance com a ovelha em "Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar". Dispensa comentários.


Dididibetânia

Muitas outras coisas fazem da "Fantástica fábrica" um filme inesquecível. Sempre me fascinou a quantidade de mistérios que ficam em aberto. Quem era Willy WonKa e como criou a fábrica mágica de chocolate? Quem são os umpa-lumpa, anões de cabelo verde, antipáticos e transmissores de lições de moral musicadas? O que vai acontecer com as quatro crianças mimadas? Morreram, ficaram aleijadas para sempre? O que vai acontecer com a fábrica quando Charlie assumir? O filme termina com todas essas maravilhosas questões em aberto, cumprindo o papel primordial de um filme infantil: dar asas à imaginação, provavelmente o chavão mais repetido e menos (decentemente) cumprido da história da humanidade.

Pena que Tim Burton foi mexer com o que não se mexe. Ele deveria ter feito como meu amigo Fábio Simplício, o "Minas", quando dizia com seu jeito de mineiro do brejo: "Não vou mexer com isso não...". Quando um cidadão como Milton Nascimento grava uma música como "Beatriz", qualquer outro cantor tem que pensar quatorze vezes antes de gravar a dita cuja. Pena que o mundo seja cheio de Anas Carolinas. Burton, não satisfeito em criar uma versão mais chata, vomitando tecnologia e com músicas piores, resolveu acabar com o melhor da primeira versão: os mistérios. Primeiro, Burton teve a brilhante idéia de explicar a origem dos umpa-lumpa. Criou um país ridículo e inúmeras justificativas. E colocou a cereja no bolo. Depois do sofrível Willy Wonka de Johnny Deep entregar a fábrica para Charlie, o diretor resolveu explicar a origem do personagem. O criador da fábrica dos chocolates mais gostosos do mundo só surgiu porque seu pai era um dentista neurótico que nunca o deixou comer doces. Gênio! Esfaqueou meu filme preferido de criança com uma dose letal de psicologia de botequim.

Melhor do que ler tudo o que escrevi, é perceber que Burton esqueceu de prestar atenção na letra da música do vídeo abaixo. Chama-se "Pure imagination".

"Hold your breath, make a wish, count to three
Come with me
and you'll be
in a world of pure imagination
Take a look
and you'll see
into your imagination
We'll begin
with a spin
traveling in the world of my creation
what we'll see
will defy EXPLANATION"

http://www.youtube.com/watch?v=RZ-uV72pQKI

(A melhor cópia do youtube não deixa incorporar no blog)

Mas Disney e Burton ainda não estavam satisfeitos. Afinal, avacalhar um filme relativamente bem-sucedido de 1971 não era lá essa coisas. O pessoal resolveu mexer com a mais notória obra de magia e loucura da literatura infantil. "Alice", obviamente. Confesso que comecei a ver o filme empolgado, principalmente depois de descobrir que a atriz principal era a australiana de origem polonesa (segundo o Wikipedia) Mia Wasikowska. A primeira vez que a vi foi na série da HBO "In treatment" (recomendo fortemente). Confesso que ela me fez chorar muito mais do que um machão de trinta e muito poucos anos deveria. Mas, eis que senão quando (como dizia o velho Lessa), a história me vem com mais uma explicação. Aquela Alice mais velha cresceu pensando que sua primeira aventura, aquela do livrinho de Lewis Carroll, não passou de um sonho e agora ela voltou com a missão de liderar as forças do bem do país da maravilhas contra as forças do mal. Gênios! Gênios duplos! Lewis deve ter virado um peão no túmulo. Burton e a Disney transformaram sua obra no supra-sumo da mediocridade: o maniqueísmo estadunidense.




Nem mesmo a linda e talentosíssima atriz Mia Wasikowska salvou a "Alice" de Tim Burton.


Acho que deu por hoje. O primeiro capítulo deste compêndio já está pronto.

PS: Saquei momentos depois de publicar. O filme faz 40 anos este ano! Então fica um parabéns duplo para duas pessoas que eu amo muito e que se tornaram quarentonas este ano: Willy Wonka e minha irmã, Juliana Lessa.