A
foto acima escreve parte fundamental da minha história. Meu avô Benjamin, minha
avó Arminda, meu pai à esquerda e meu tio Renato, com sorriso maroto. Tio Renato nos deixou agora, junto aos fogos
de ano novo. O papai já foi faz tempo, uma década, mesmo parecendo um ontem. A
saudade não tem tempo. Ela pode ser digitalizada como essa foto rota em branco
e preto. Fica gostosa para sempre.
Eu pensei intitular este texto “Uma
história de dois irmãos”. Logo vi a desonestidade. Conheci meu pai, na
maternidade de São Paulo, aos seus 34. Quando tio Renato fez oitenta anos, em
2016, me dei conta do fato curioso: ele tinha justamente o dobro da minha
idade. Ou seja, todas as palavras desta crônica, daqui em diante, serão
impressões sobre estes dois meninos dos quarenta em diante. Escritas por um
filho e sobrinho recém-chegado aos quarenta. São tudo menos confiáveis.
Dito isto, coloco à vista a minha
versão. Renato e Roberto foram dois Dom Quixotes combatendo moinhos de vento. Um
foi pela direita e o outro pela esquerda. Nasceram ao final da Segunda Guerra, viveram Getúlios, Juscelinos, Jânios e Jangos. Sobreviveram à ditadura, à nova
República, ao FHC e morreram um no início do Mensalão e o outro em meio ao
Petrolão.
O moinho de vento, nessa analogia tosca (aliás, como toda
analogia), é o nosso Brasilsão. Essa coisa bizarra, esse desafio institucional diário.
Meu pai encarou essa fera numa linha, digamos, mais para Henry Thoreau, meio
anarquista, meio propenso ao enfrentamento. O tio Renato, mais ponderado, foi
pela linha do exemplo. Poderia, grosso modo, ser classificado como o antigo
“Caxias”. A ele não importava o caos brasileiro, o correto era o correto. E
assim ele viveu.
Não tenho a menor ideia de como foi a relação deles na
infância, na adolescência, nos primeiros anos de faculdade. Cheguei tarde na
vida destes dois irmãos. A vida vem, traz embates políticos, traz problemas na
família, e os dois estavam sempre lá, firmes, mirando seus moinhos.
Outra quixotisse curiosa dos dois era a torcida de times de
futebol. Meu pai era Corintiano, o tio Renato São-paulino. Meu pai, maroto,
sempre me passou a versão de que o tio Renato havia sido o perversor da
família, supostamente corintiana desde tempos imemoriais. Muito tempo passou
até a minha constatação de um fato óbvio: se meu avô Benjamin havia nascido em
1910 e o Corinthians foi fundado em 1910, não havia meio de a família ser
corintiana desde tempos imemoriais... Além disso, o Renato sempre jurava de
pés juntos a total irrelevância do futebol na vida do Benjamin. Ele descrevia em
detalhes um dia em que o pai os levou a um Majestoso decisivo
e passou o tempo todo lendo o Estadão, como se estivesse na cadeira de balanço
de casa.
Esses mitos, histórias e versões familiares só vieram à
tona num quadro meio trágico. Quando papai caiu doente, o tio Renato foi uma
presença constante. Ali eu entendi a irrelevância das divergência ideológicas,
futebolísticas e programáticas, substituídas naturalmente pelo amor fraterno
daquelas duas figuras tão queridas. Minha memória mais bonita do tio Renato
sempre será ele no Hospital Santa Catarina, na Avenida Paulista, segurando a
mão do papai e fazendo uma oração. Ele era sempre o primeiro a chegar. Eram só
dois irmãos, juntos, batendo papo, com muito carinho.
Depois da morte do papai, o tio Renato e eu nos aproximamos
muito. Nos onze anos passados entre a morte do papai e a dele, ele foi um pai
pra mim. Sempre esteve presente, me ajudou em momentos difíceis, sempre me
ligava, mandava e-mails, enfim, foi o bom e velho tio Renato. Mas, como estamos numa crônica,
quero registrar as histórias deliciosas herdadas dessa nossa convivência.
Uma das histórias mais legais foi a revelação de como ele
se tornou torcedor do SPFC. Havia um lixeiro, motorista de carroça, responsável
pela coleta dos dejetos da rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, onde ele e o
papai moravam. O tio Renato ficou amigo do filho do lixeiro e se divertia passeando
de carroça pelo bairro, para desespero das tias elitistas da família Themudo
Lessa
(Posso estar errado, mas essa história encaixa
perfeitamente com o sorriso maroto do moleque da foto). Este lixeiro era torcedor fanático do tricolor do Morumbi. Ele convenceu
o menino. Durma com uma história dessas um corintiano sempre pronto a acusar um
são-paulino de playboy.
Outra história bonita contada por ele foi o primeiro dia em
que ele levou o Renatinho, meu primo, a um jogo do SPFC. Ele contava, com os
olhos brilhando, a hora em que o time entrou em campo no Morumbi e o Renatinho
falou: “Pai, esse é o NOSSO São Paulo?”. Mas nessa hora eu me agigantei. Eu
lembrei da minha história com o papai me levando ao Pacaembu, em 1982, para ver
o Sócrates, Casagrande, Solito, Vladimir, Zenon e cia. Aí ele rebatia dizendo
que nós não tínhamos título internacional, eu rebatia dizendo que a torcida do
São Paulo era frouxa e nós brigávamos naqueles tradicionais quinze minutos.
Os dois meninos da foto acima poucas vezes se entenderam
nas discussões políticas e nas querelas de futebol. Mas sempre andaram juntos
no caráter, na compreensão e no amor. Foram legais a ponto de me dar uma
nostalgia futura. Eu, hoje, gostaria de ser mais sereno, mais amoroso, mais
esperançoso como eles nessa foto.
Roberto e Renato apertam meu coração de saudade não por
suas ideologias, não por suas paixões futebolísticas, mas simplesmente pelas
vidas que viveram. Era tão bom conversar, abraçar, passar tempo inútil com
eles. Eram serenos, calorosos, gente fina, simplesmente dois bons paulistanos
da gema.