23.1.17

Dois irmãos



        A foto acima escreve parte fundamental da minha história. Meu avô Benjamin, minha avó Arminda, meu pai à esquerda e meu tio Renato, com sorriso maroto.  Tio Renato nos deixou agora, junto aos fogos de ano novo. O papai já foi faz tempo, uma década, mesmo parecendo um ontem. A saudade não tem tempo. Ela pode ser digitalizada como essa foto rota em branco e preto. Fica gostosa para sempre.

            Eu pensei intitular este texto “Uma história de dois irmãos”. Logo vi a desonestidade. Conheci meu pai, na maternidade de São Paulo, aos seus 34. Quando tio Renato fez oitenta anos, em 2016, me dei conta do fato curioso: ele tinha justamente o dobro da minha idade. Ou seja, todas as palavras desta crônica, daqui em diante, serão impressões sobre estes dois meninos dos quarenta em diante. Escritas por um filho e sobrinho recém-chegado aos quarenta. São tudo menos confiáveis.

            Dito isto, coloco à vista a minha versão. Renato e Roberto foram dois Dom Quixotes combatendo moinhos de vento. Um foi pela direita e o outro pela esquerda. Nasceram ao final da Segunda Guerra, viveram Getúlios, Juscelinos, Jânios e Jangos. Sobreviveram à ditadura, à nova República, ao FHC e morreram um no início do Mensalão e o outro em meio ao Petrolão.

O moinho de vento, nessa analogia tosca (aliás, como toda analogia), é o nosso Brasilsão. Essa coisa bizarra, esse desafio institucional diário. Meu pai encarou essa fera numa linha, digamos, mais para Henry Thoreau, meio anarquista, meio propenso ao enfrentamento. O tio Renato, mais ponderado, foi pela linha do exemplo. Poderia, grosso modo, ser classificado como o antigo “Caxias”. A ele não importava o caos brasileiro, o correto era o correto. E assim ele viveu.

Não tenho a menor ideia de como foi a relação deles na infância, na adolescência, nos primeiros anos de faculdade. Cheguei tarde na vida destes dois irmãos. A vida vem, traz embates políticos, traz problemas na família, e os dois estavam sempre lá, firmes, mirando seus moinhos.

Outra quixotisse curiosa dos dois era a torcida de times de futebol. Meu pai era Corintiano, o tio Renato São-paulino. Meu pai, maroto, sempre me passou a versão de que o tio Renato havia sido o perversor da família, supostamente corintiana desde tempos imemoriais. Muito tempo passou até a minha constatação de um fato óbvio: se meu avô Benjamin havia nascido em 1910 e o Corinthians foi fundado em 1910, não havia meio de a família ser corintiana desde tempos imemoriais... Além disso, o Renato sempre jurava de pés juntos a total irrelevância do futebol na vida do Benjamin. Ele descrevia em detalhes um dia em que o pai os levou a um Majestoso decisivo e passou o tempo todo lendo o Estadão, como se estivesse na cadeira de balanço de casa.

Esses mitos, histórias e versões familiares só vieram à tona num quadro meio trágico. Quando papai caiu doente, o tio Renato foi uma presença constante. Ali eu entendi a irrelevância das divergência ideológicas, futebolísticas e programáticas, substituídas naturalmente pelo amor fraterno daquelas duas figuras tão queridas. Minha memória mais bonita do tio Renato sempre será ele no Hospital Santa Catarina, na Avenida Paulista, segurando a mão do papai e fazendo uma oração. Ele era sempre o primeiro a chegar. Eram só dois irmãos, juntos, batendo papo, com muito carinho.

Depois da morte do papai, o tio Renato e eu nos aproximamos muito. Nos onze anos passados entre a morte do papai e a dele, ele foi um pai pra mim. Sempre esteve presente, me ajudou em momentos difíceis, sempre me ligava, mandava e-mails, enfim, foi o bom e velho  tio Renato. Mas, como estamos numa crônica, quero registrar as histórias deliciosas herdadas dessa nossa convivência.

Uma das histórias mais legais foi a revelação de como ele se tornou torcedor do SPFC. Havia um lixeiro, motorista de carroça, responsável pela coleta dos dejetos da rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, onde ele e o papai moravam. O tio Renato ficou amigo do filho do lixeiro e se divertia passeando de carroça pelo bairro, para desespero das tias elitistas da família Themudo Lessa (Posso estar errado, mas essa história encaixa perfeitamente com o sorriso maroto do moleque da foto). Este lixeiro era torcedor fanático do tricolor do Morumbi. Ele convenceu o menino. Durma com uma história dessas um corintiano sempre pronto a acusar um são-paulino de playboy.

Outra história bonita contada por ele foi o primeiro dia em que ele levou o Renatinho, meu primo, a um jogo do SPFC. Ele contava, com os olhos brilhando, a hora em que o time entrou em campo no Morumbi e o Renatinho falou: “Pai, esse é o NOSSO São Paulo?”. Mas nessa hora eu me agigantei. Eu lembrei da minha história com o papai me levando ao Pacaembu, em 1982, para ver o Sócrates, Casagrande, Solito, Vladimir, Zenon e cia. Aí ele rebatia dizendo que nós não tínhamos título internacional, eu rebatia dizendo que a torcida do São Paulo era frouxa e nós brigávamos naqueles tradicionais quinze minutos.

Os dois meninos da foto acima poucas vezes se entenderam nas discussões políticas e nas querelas de futebol. Mas sempre andaram juntos no caráter, na compreensão e no amor. Foram legais a ponto de me dar uma nostalgia futura. Eu, hoje, gostaria de ser mais sereno, mais amoroso, mais esperançoso como eles nessa foto.

Roberto e Renato apertam meu coração de saudade não por suas ideologias, não por suas paixões futebolísticas, mas simplesmente pelas vidas que viveram. Era tão bom conversar, abraçar, passar tempo inútil com eles. Eram serenos, calorosos, gente fina, simplesmente dois bons paulistanos da gema.

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