26.11.09

Sonho de uma noite de verão

O ventilador batia forte, as energias da cama iam e voltavam, frio demais sem os lençóis, calor esquisito com. Já sonhara as coisas que odiava, circo, mendigo, surra do colega da sexta série, coisas desconexas e sem luxúria, muçulmanos e ligas metálicas, tudo menos um prazerzinho. O sono não fluía bem e, depois de uma passeada qualquer por um prédio abandonado com santas barrocas, sentou num tronco lilás e ouviu o cutucar chato de uma coisa familiar. Anota aí! Anota logo, vai! Agora! Anota o quê? O número, vai: quatro, sete, meia,... O cidadão, quase bispo, sugeriu que cantassem uma trovinha com os números. Quatro lá, sete sol, meia ré e coisa e tal. O que sucedeu, uma pedra até onze da manhã e o acordar penitente daquela hora, não é nada, mas nada é alguma coisa depois de uma coisa dessas. Pastores ainda pregavam na televisão ligada, o café acabara, o dia nublou, a cueca rasgava e o número, longe da santidade da memória, ficou rabiscado numa conta a pagar prestes a cair da escrivaninha.

Número começado com quatro, sete, meia aterrorizava a classe média, um apelo a Virgem Maria, é coisa de periferia ou de presídio. Um código secreto capaz de fazer sua mãe reverenciar o bina e esquecer São Jorge. Uma sequência cabalística porém insuficiente para tirar um tédio tardio do seu curso natural. Até que revistas descritivas da realidade terrestre, copos com meio suco e cinzeiros pedindo socorro saíssem do caminho, dois dias foram. Para sair do mesmo, brincou de fazer trote da infância apartamentícia, quantas pizzas não devolveu o pobre Seu Soares do terceiro andar. Se mera enganação ou fio de esperança convicto na existência paralela, só uma vidente saberia. Superou a preguiça do telefone sem fio da sala e discou vagaroso: quatro, sete, meia... Alô? É... alô. Pois não? Me perdoe a indelicadeza, não costumo fazer isso, você poderia me dizer de onde falam? Olha, parece que aqui é do sonho do seu Marcelo. Pausa cruel. Lá era do sonho dele. E quem está falando? Aqui é o gato maltês.

O importante do felino era o timbre de Voz do Brasil, intimidador e dono da verdade, nem parecia viver num estado laico. Saberia me informar se o senhor Marcelo se encontra? Olha, pra ser sincero eu estou um pouco perdido com essa coisa de encontrar comida no ambiente etéreo, isso é novo pra mim, apesar de maltês. Afinal, peixe é peixe e cio é sonho divino em qualquer lugar. O senhor é simpático, vou tentar o Flash dois. Lá Sol Ré Sol Lá Mi Mi... Lá Sol Ré... As unhas marselhesas já se corroíam. De castigo e de tesão. Alô? Boa tarde, eu gostaria de falar com o senhor Marcelo. Ele no momento se encontra ocupado com as virgens de Alá, senhor. Você poderia informar que é o Marcelo, ele mesmo, quem gostaria de falar? Neste caso estarei verificando, senhor. Lá Sol Ré Sol Lá Mi Mi... Lá...rápio Sol...stício Ré...mido lá lá...

Não acredito! Esse é o meu garoto! Esse é o cara! Mamá, garotas! Mamá na linha! A ligação era perfeita, o burburinho dava pra sentir na pele. A origem do universo seria o cumprimento que se faz a si mesmo. Tudo bem por aí? Aqui está tudo na maior santidade, estou vestido de rabino, trancinha e tudo, sunguinha Calvin Klein, funk carioca bombando, arquitetuta gótica, sol ensolarado, mas eu quero pausar tudo! Pausa tudo! Quero ouvir você, Mamá! Me fala de você, Mamá!

Alheio ao fuzuê, quis apenas a pergunta fundamental.

- Eu só queria te perguntar por que sempre que eu começo a transar no sonho o sonho termina.

- Sempre mesmo?

- Sempre. O máximo que eu consegui foram as primeiras bombadinhas.

- Puxa vida... Mas sempre foi assim?

- Sempre. Desde o tempo da Xuxa.

- Caramba... Pô, a Xuxa... É importante.

- É, mas eu só sonhava com ela no tempo da Manchete.

- Sério? Na Globo não?

- Não... Aquele cara vestido de joaninha, o disco voador e aquele anão meio que me tiravam o tesão.

- Mas nem as paquitas compensavam?

- Pois é, não... Eu tinha uma encanação que era muita loira e eu não ia dar conta.

- Nossa. Isso é trauma profundo. Infantil.

- É...

- Nosso Pai deve ter explicado alguma coisa profunda nessa época.

- Será?

- Acho que sim. Ele te explicou, nos detalhes, o que era polução noturna?

- Hum... Explicou.

- Ah, então...

- É....

- ...

- Bom. Está tudo bem com você aí, né?

- Ah, por aqui está beleza.

- Então é isso aí. Nos falamos, certo?

- Nos falamos.

- Abraço.

- Abraço.

6.11.09

O descobridor de Potosí

Havia entre os ibéricos, desde medievais eras, verdadeira adoração pelos brasões. Assim o demonstra o orgulho sóbrio com que a família espanhola Garcez Vásquez exibiu sua cor em bandeiras no porto de Lisboa em 12 de novembro de 1518. Partia naquele dia um de seus mais ilustres fidalgos, D. Diego Garcez Vásquez, capitão da expedição exploratória a serviço do monarca português D. João III, o Piedoso. Ao caminhar em direção a nau Santa Madalena, o manto de D. Diego adquiriu espantoso brilho, fundindo-se à cor preponderante de seu brasão em algo sólido e único. Levantadas as velas, sua embarcação e as demais da frota fundiram-se ao mar e céu, o próprio sol escureceu antes da noite e o capitão desapareceu na uniformidade, muito antes de atingir o horizonte. Nesta toada conduziram-se, como num vôo, até as águas cristalinas dos rios do sul da América.

Atracaram na baía de Santa Catarina, inteira tomada por matas e gramíneas. Mal se podia ver a areia. A expedição, além de seus homens, contava com índios carijós trajados em folhas, fibras e cordas de cipó. Livre de seu manto incompatível aos ares tropicais, D. Diego conduzia o grupo com desenvoltura impressionante, como se prescindisse de qualquer orientação dos nativos. Os homens atribuíam sua estranha nova coloração às febres tropicais. Em muitos momentos, embrenhados na mata, viam o capitão desaparecer. Mais adiante, a curta distância, distinguiam-no finalmente em meio às rãs, jacarés, cobras e folhagens. O brasão, sempre carregado tal um cajado pelo explorador, também se transformava, misturado naturalmente ao ambiente fechado e hostil.

Após dois meses chegaram ao deserto. Mais da metade dos europeus perecera. D. Diego e seus homens cobriram-se de tinturas à base de pau-brasil confeccionadas pelos carijós. A proteção era necessária para resistir à exposição constante ao sol e a ausência de sombras. Sobreviveram graças à caça de animais rasteiros, assando suas carnes expostas e afiando os dentes como selvagens. A pouca madeira que encontravam pelo caminho era cuidadosamente guardada para que suportassem a temperatura da noite em volta do fogo. Após uma sangrenta batalha com índios rivais dos carijós, o corpo de D. Diego e seu brasão eram, novamente, uma só pele, esgarçada pela selvageria, indistinguível da cor dos nativos e da areia sem fim.

Tanta agrura e morte não foram em vão. O explorador fez de sua missão uma resposta às súplicas dos monarcas ibéricos. Descansou pela primeira vez seu semblante ao avistar a montanha prateada de Potosí. Foi tal seu deslumbramento que não notou a beleza da vila indígena, toda coberta de gelo e neve, as construções de pedra, os lobos e coelhos domesticados descansando à porta das casas. Conforme se aproximava da montanha, D. Diego empalidecia e seus olhos claros descoloriam. Caminhou afundando na neve até desaparecer aos olhos dos dois carijós que ainda o acompanhavam. Deitou finalmente sobre o mar de prata e não pode mais se mexer. Expôs seus dentes todos, num sorriso febril. Permitiu que sua pele absorvesse toda a força fria da montanha. Aos poucos seu corpo, e o brasão dos Garcez Vásquez, transformaram-se numa mistura sólida de gelo e carvão.

Nesta forma D. Diego retornou ao velho continente em 1556, levado por navegadores desconhecidos. A corte do rei espanhol Felipe II o recebeu a princípio com estranhamento. Contudo, logo deram início às homenagens e honrarias. Repousou, enfim, num suntuoso jazigo, descolorido, no cemitério de Madrid.